Elegia

Palmeiras explodem no ar
crispam de azul
o céu dessa manhã outonal.
               *
A Lagoa desenha geografias
que o olhar comovido
agradece.
              *
A cidade sou eu,
dizia Drummond
molemente dentro de um táxi.
              *
Do Botânico Jardim
me despeço hoje
com o coração em compasso de espera.
             *
Que venham o túnel,
as Laranjeiras,
a rua Alice.
            *
(Analice Martins)

A cidade que habita os homens

O título a que recorro para esse texto-homenagem aos 450 anos da cidade do Rio de Janeiro é parte do questionamento levantado por Nelson Brissac em artigo de 1996: “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nelas?”

A primeira parte da pergunta, a que escolhi para pensar a relação dos moradores com a “cidade maravilhosa”, é a que traz, sobretudo, uma noção de pertencimento afetivo, que, independentemente de onde estejamos residindo no momento, arrastamos como memória fecunda. Não ter nascido em determinado lugar não nos exclui de nos sentirmos parte dele, de nos vermos em seus hábitos, costumes, falares, paisagem e história.

Ser habitado por uma cidade é ter com ela uma relação de identidade, é elegê-la como discurso e imaginário. Isso não tem nada a ver com cegueira crítica ou política, é vínculo mais doído: é amar apesar de. Algo como diz Carlos Drummond de Andrade, poeta nascido no estado de Minas Gerais, sobre sua cidade natal: “Itabira é apenas uma fotografia, mas como dói”.

São dele, aliás, alguns dos poemas que mais dão conta do sentimento de enamoramento e paixão pela cidade de São Sebastião. A mineiridade drummondiana vai aos poucos cedendo ao fascínio das linhas sinuosas do Rio de Janeiro, como na seção do poema “Lanterna mágica”, que leva o nome da cidade: “Fios, nervos, riscos, faíscas./ As cores nascem e morrem/ com impudor violento”. Mais à frente, com o coração que segue “molemente dentro do táxi”, cede à voluptuosidade dos corpos nas areias: “Nas praias nu nu nu nu nu nu/ Tu tu tu tu tu no meu coração”. Não sem ressalvar a dinâmica ambígua da cidade: “Mas tantos assassinatos, meu Deus.”/E tantos tantíssimos contos do vigário…”

As comemorações muitas que estão ocorrendo na cidade por meio das artes em geral reverenciam essa “paisagem cultural urbana”, considerada patrimônio pela UNESCO em 2012. Um patrimônio material e imaterial, uma categoria peculiar que corresponde à utilização humana da natureza e da topografia da cidade e que identifica um estado de espírito sem o qual a cidade perderia o seu elã: ser ou sentir-se carioca.

É claro que qualquer entendimento do que seja tal estado de espírito gerará controvérsias, mas o fato é que, aprisionados entre o mar e as montanhas, entre avenidas e favelas, entre o samba e o clássico, entre Niemeyer e o grafite, vai palpitando em nossos corações “a alma encantadora das ruas”, de que já falara João do Rio.

O poema “Coração numeroso”, de Drummond, expressa a captura da alma do poeta, sua gradual rendição à cidade, do mar que era uma promessa e do vento que ainda vinha de Minas para “uma fascinação casas compridas/ autos abertos correndo caminho do mar/ voluptuosidade errante do calor/ mil presentes da vida aos homens indiferentes”, de tal modo que seu “coração bateu forte” e que o mar agora batia em seu peito: “o mar batia em meu peito, já não batia no cais”. O poeta, então, exclama “a cidade sou eu/ sou eu a cidade”, na fusão lírica por excelência em que o “eu” faz transbordar seu estado anímico sobre a realidade externa, e esta o toma de assalto. Sujeito e objeto passam a ser uma coisa só. Nesse caso, de fato, é a cidade que habita os homens.

Meu coração também está mole como o do poeta. A contingência de uma mudança de apartamento no Rio de Janeiro me fez percorrer a cidade novamente a pé, de ônibus, de táxi. E colocou-me a observar, encantada, sua dinâmica em cada rua, em cada bairro, em cada esquina, em cada bar e padaria.

Mais fascinantes ainda têm sido as histórias dos proprietários dos apartamentos visitados. Cada um e sua janela, sua vista sobre a cidade, o bairro e sua história. Cada um e seu discurso sobre o Rio de Janeiro. Talvez, pela ausência de um olhar técnico sobre o imóvel em si, acabo ficando presa às histórias contadas das janelas que se debruçam sobre ruas, árvores e morros. O cansaço da procura vai sendo substituído pela escuta das relações de cada um com a cidade e por esse sentimento de que a cidade os habita e a mim também.

(Analice Martins)

O documentário e a vida

Não gosto de cinebiografias nem de musicais biográficos. Às vezes prefiro não saber que o filme foi baseado em fatos reais. Fico então muito deslocada diante da voga atual de boa parte das produções ditas artísticas no Brasil. Acho que sou uma chata mesmo. Vejo em todo esse movimento de produção muito oportunismo mercadológico disfarçado como circunstância de celebração.

Tudo isso é apenas um lado da “espetacularização do eu”, promovida pelas mídias em geral. Não vejo gratuidade nesse fenômeno. Ao contrário, lamento que não nos preocupemos com as causas sociológicas, psicológicas, filosóficas dessa “febre do eu”, ou como diria a pesquisadora Paula Sibilia, desta “exintimidade”.

Para que fique claro: Não estou julgando o mérito e a qualidade de atores, dançarinos, fotografia, figurinos e sonoplastia. Podem ser impecáveis. São exaltados pela crítica em geral, mas escondem roteiros, por vezes, frágeis e duvidosos. Discordem ou não, creio que o roteiro seja a alma de um filme. É ele que conduz a narrativa que trará, para o plano visual e cênico, as personagens que se erguerão diante de nossos olhos. Em cinebiografias e musicais biográficos, não nos iludamos, o que está diante de nós é um personagem que, por meio do corpo do ator e do entorno cênico da produção, evoca uma pessoa que é ou foi “de carne e osso”. Quando sentimos o personagem e a narrativa fílmica como a pessoa e sua história concretas, é porque o poder da ficção funcionou, criando a ilusão de realidade tão desejada pelas artes em geral.

A ficção existe para isso: para nos iludir, para recriar, para reinventar ou mesmo para falsear. Ficção não é documento de cartório. Não precisa prometer dizer a verdade, apenas a verdade, nada mais do que a verdade sob a ameaça de amargar alguma punição. Então, em que ponto se encontra a resistência pessoal de que falei no início?

Talvez apenas em minhas rabugices. Prefiro os documentários mesmo sabendo que, no fundo, são também um narrativa construída meticulosamente, urdida com os mesmos procedimentos de uma trama ficcional. O documentário pretende ser o decalque da vida como ela é ou foi, mas a vida não ganha a tela de forma tão autônoma ou talvez autômata assim. Há olhares e mãos que a transpõem. Um documentário também tem roteiro, também constrói uma narrativa. Mas é diferente. Nele, assombrosamente aquelas pessoas que já se foram pulam diante de nossos olhos e sentidos com a dimensão de seus corpos, gestos, respiração e voz. Saem do além e entram em nosso aqui-e-agora fantasmagoricamente imantadas por aquela “aura” da presentificação. O documentário é como a divertida montagem de um quebra-cabeça. Os fragmentos dispersos vão reconstruindo a vida, com suas idiossincrasias e arranhões.

Insisto: um documentário, por mais que queira ser a vida como ela é ou foi, é ficção, admite versões, sugere interpretações, tem direção, tem decisões e opções. É como abrir um baú e escolher as peças “reais” com que vamos recontar uma história. Há escolhas, opções, descartes, peças inusitadas, mas guarda um cheiro do mofo da vida.

Gostei muito do documentário “Cássia Eller”, de Paulo Henrique Fontenelle, seja pelo maravilhoso arquivo de imagens que nos transportam para aquela realidade que já se esfumaçou, seja pela história da trajetória da cantora, observada por aqueles que a acompanharam de perto: amigos, parceiros, empresários, diretores, amados e amantes.

Em especial, gostei muito dos aspectos de sua vida destacados pela amiga Zélia Duncan, não à toa, uma mulher amante das letras e das narrativas. Zélia pontuou a garganta vulcânica (“a Cássia tinha um vulcão na garganta”), sua estranheza fêmea-macho, macho-fêmea, seu pioneirismo, mesmo que não premeditado, na constituição dos novos lares. Chicão, seu filho com o baixista Tavinho Fialho, morto em um acidente de carro, ganhou judicialmente o direito de ser criado pela ex-mulher de Cássia, Maria Eugênia Vieira. Um desejo sempre reiterado pela cantora.

Adorei o depoimento do crítico musical Tárik de Souza que destacou a importância de Cássia no sentido autoral, pelas apropriações de que foi capaz: de gêneros musicais distintos, do rock ao samba, de canções inesquecíveis na voz de seus intérpretes originais. Se Cássia não foi uma grande compositora, foi uma intérprete autoral, ou seja, fez ser dela, como só ela o faria, o que era do outro. Isso é criação, isso é autoria, isso é assinatura. Para mim, o caso mais visível desse aspecto é sua interpretação de “Non, je ne regrette rien”, canção enaltecida na voz de Edith Piaf. Sem falar uma palavra em francês, mas com a coragem e o destemor dos grandes cantores, fez da canção francesa um depoimento-símbolo de sua vida: “Não, eu não lamento nada”. O “erre” gutural francês descia como um doce veneno em sua garganta.

E, ao final, para dar um xeque-mate na ficção e em seus engodos: a aparição de Chicão em um depoimento à la Cássia Eller. Tímido, esforçando-se com as palavras diante das câmeras.

Vale a pena conferir!

(Analice Martins)

O sertão de Ronaldo Correia de Brito

O escritor Ronaldo Correia de Brito é cearense, mas mora em Recife. Sua ficção, representada pelos contos de Faca e Livro dos Homens, além dos romances Galileia e Estive lá fora, encena os tensos diálogos entre a ambientação sertaneja e a esfera urbana, entre tradição e modernidade, entre localismo e cosmopolitismo.

O premiado romance Galileia (2009) narra o retorno dos primos Adonias, Davi e Ismael à casa do patriarca, o avô Raimundo Caetano, na qual todos passaram a infância. Homens da cidade e do mundo, viajantes e estrangeiros, fazem o caminho de volta ao sertão do qual fugiram como “aves de arribação”, segundo o avô. A celebração do aniversário do patriarca moribundo é o mote da viagem. O reencontro com um passado que não esconde culpas, mágoas, violência e tragédia é temido pelos três assim como o sertão com o qual se deparam.

São as ruínas de um passado opulento, de latifúndios com até doze mil cabeças de gado, que são vislumbradas pelas janelas da caminhonete que os traz de volta. Com a agricultura e a pecuária falidas, o sertão descortinado aos olhos dos personagens é outro. Os tempos mudaram, como diz, sobre a terra e os filhos, o dono de uma birosca à beira da estrada: “Não existe mais roça, nem eles querem, não existe mais gado, nem eles querem. Tem a cidade sem emprego”.

O sertão descrito pela ficção de Brito é agônico, sua grandeza épica pertence a uma outra ordem econômica do Brasil. Já o sertão contemporâneo se assemelha à periferia da cidade grande. Vive às margens de uma efetiva modernização, ainda que beneficiado por ela. Celulares, games, internet, motocicletas e mototáxis encurtam as distâncias, mas não preenchem o vazio de empregos, nem incluem o sertanejo marginalizado. Se antes era o flagelo da seca, agora a prostituição como resultado de uma modernização excludente.

As tradições culturais locais servem tão-somente para encenações. Roupa de couro e chapéu na cabeça são tristemente adereços para o xaxado, não correspondem mais ao exercício de uma função. Até os aboios de vaqueiro são ouvidos apenas nos programas de rádio. O sertão arcaico é apenas imagem, simulacro: o quarto de fabrico de queijo na Galileia, por exemplo, arruinou-se, as prensas lembram esqueletos de dinossauros, lembranças da fartura de leite: “Nos fogões de lenha não se torra café nem manteiga, nem se produz sabão da gordura de porcos e bois. Panelas de barro e cobre, cuias, jarras, potes e alguidares perderam a função. Minguaram, substituídos sem saudades por plásticos e acrílicos”.

Seria temeroso, no entanto, afirmar que o sertão ficcionalizado por Brito seja apenas uma paisagem e um cenário em ruínas, pano de fundo para discussões mais universalizantes. A fortuna crítica tem feito coro a esse olhar, embalada, sem dúvida, pela voz do próprio escritor, cujas entrevistas ajudam a construir tal discurso de autoridade.

Penso que uma das grandes subversões temáticas da prosa de Brito tem sido insistir na representação do sertão como um lugar de passagem, de trânsito, atravessado por deslocamentos e abandonos, incapaz de agarrar o homem a terra. A paisagem desolada e arruinada de agora em nada lembra os “inventários do passado”, “quando os Inhamuns eram uma terra rica, cheia de pasto, em que não parava de chegar gente” como afirma o personagem Ismael. Nesse contexto, observa-se não apenas a reestruturação de uma ordem econômica de produção, mas sobretudo um traço mais acentuado, sinal de que os tempos irremediavelmente mudaram: a mobilidade. É desses atravessamentos e hibridizações de que fala Brito.

O conceito de lugar identitário, relacional e antropológico, postulado pelo antropólogo Marc Augé, pode ser associado ao sertão da prosa regionalista de 30, ao qual os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, mesmo acossados pela seca e pela miséria, desejavam estar plantados, criando raízes e agarrando-se  a terra. O deslocamento compulsório em direção à cidade grande era antes de tudo uma estratégia de sobrevivência, não um desejo de errância. O sertão da Galileia de Brito não é relacional, é lugar de passagem e de fluxos. Um lugar em que, como diz Adonias, estão todos sempre de passagem ou de saída. Portanto, perceber o sertão como um “não-lugar”, na acepção de Augé, fratura o discurso localista da tradição regionalista brasileira, embaralha e tensiona as fronteiras entre campo e cidade, configurando um palco de tensões entre a herança rural e o futuro apocalíptico das cidades.

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*Este texto é parte do artigo que apresentei, em 2014, em Rennes (França), no congresso “Cartografias literárias do Brasil atual: espaços, atores e movimentos sociais”.

(Analice Martins)

Glossário e interpretações

EDWARD SAID, intelectual palestino, autor da imprescindível obra “Orientalismo”, afirma: “Hoje em dia, é muito frequente ouvir intelectuais acadêmicos norte-americanos ou britânicos falarem sobre o mundo islâmico; são abordagens feitas de forma redutora e, a meu ver, irresponsável sobre algo denominado “o islã” – cerca de 1 bilhão de pessoas, dezenas de sociedades distintas, meia dúzia de línguas principais como o árabe, o turco e o iraniano, todas elas espalhadas por um terço do planeta. Ao usarem essa única palavra, parecem considerá-la um mero objeto sobre o qual se podem fazer grandes generalizações que abrangem um milênio e meio da história dos muçulmanos, e sobre o qual antecipam, descaradamente, julgamentos a respeito da compatibilidade entre o islã e a democracia, o islã e os direitos humanos, o islã e o progresso”.

TARIQ RAMADAN, filósofo e acadêmico, professor de filosofia europeia e estudos islâmicos, no Saint Antony’s College, em Oxford, adverte: “O fato de existirem milhões de descendentes de árabes e mulçumanos vivendo no Ocidente causa um impacto tremendo no Islã. O mundo islâmico está de olho em nós. Se conseguirmos estabelecer uma boa convivência, sob uma base de confiança mútua, estaremos enviando o sinal de que é possível repetir essa experiência num patamar mais amplo, entre o Islã e o Ocidente. O maior atrito ocorre na Europa, mas é também onde há maiores possibilidades de diálogo. O desafio é tremendo. O caso das caricaturas do profeta Maomé, feitas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em setembro de 2005, é o sonho da extrema direita europeia e também dos extremistas islâmicos, pois atrapalha o entendimento. Os mulçumanos europeus precisam estar totalmente comprometidos com a identidade europeia e convictos de que esta sociedade é também a deles”.

ALAIN FINKIELKRAUT, filósofo francês de origem judaico-polonesa, sentencia: “Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse desprezo. Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de desenhos que demonizam o Talmud (conjunto de interpretações das leis mosaicas). É a dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a um só tempo a liberdade de expressão e o respeito às crenças. É a essa renúncia que as elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa”.

HOMI K. BHABHA, crítico literário indo-britânico e estudioso da diáspora, postula: “A blasfêmia vai além do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição. A blasfêmia não é simplesmente uma representação deturpada do sagrado pelo secular, é o momento em que o assunto ou o conteúdo de uma tradição cultural está sendo dominado ou alienado no ato da tradução”.

ROLAND BARTHES, crítico literário francês, que relê SAUSSURRE, constata que “o significado é a representação psíquica de uma coisa e não a coisa em si”.

RENÉ MAGRITTE, pintor belga do Surrealismo, relembra-nos, no célebre quadro “A traição das imagens”, que a pintura de um cachimbo não é o objeto cachimbo, não é a coisa em si: “Ceci n’est pas une pipe”.

Concordo, portanto, com o que a charge de CHICO CARUSO, publicada no jornal o “Globo”, no dia 15 de janeiro, reafirma sobre as relações entre a ARTE – dimensão em que a expressão deve ser libertária – e A REALIDADE EM SI:

(Analice Martins)

“Não matarás”

O sexto dos dez mandamentos parte do pressuposto de que o direito de matar grassava entre o povo hebreu. O decálogo é imperativo, prescreve proibições, porque pressupõe condutas não desejadas e, portanto, almeja regular o comportamento daqueles a quem se endereça.

Moisés, o responsável pela transcrição dos mandamentos divinos, segundo a tradição bíblica, foi mais do que um líder espiritual, mais do que um guia em busca da Terra Prometida. Foi um legislador. Para a tradição cristã, foi uma figura imprescindível, pois coube a ele a preparação para vinda do Messias e de sua lógica revolucionária: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Toda cultura se organiza em torno de regras e preceitos. Todas precisam de funções reguladoras para a convivência harmônica. Para a moderna cultura ocidental, a imposição da morte não seria um direito irrestrito, subordinado às paixões e aos julgamentos pessoais. Mata-se em defesa própria, mata-se em situações de guerra e para sobreviver. Ainda assim, questiona-se a legitimidade de tais situações.

Os processos civilizatórios subentendem a inexistência da barbárie, do hediondo, pressupõem o respeito e a tolerância, bases de uma convivência harmônica. Toda ótica cristã está alicerçada no amor, no perdão, na percepção e na compreensão do OUTRO. Ainda que por outros vieses – psicológicos, filosóficos ou sociológicos -, ou seja, ainda que descartando a BOA NOVA, a passagem ritualística da barbárie à civilização impõe a entrada em um universo de códigos, regras, prescrições e interdições. Não podemos ignorar, no entanto, que, em nome da civilização, a barbárie sempre foi cometida. Todos os processos de colonização aí estão para reafirmar tal paradoxo.

Caminhamos em direção ao obscuro, ao temerário, ao incontrolável. Vivemos tempos de absoluto descontrole, porque da banalização da vida e do direito a ela. Para a imposição da morte ainda havia condicionais: “Se você não…, morrerá”. Esta conjunção subordinativa adverbial desapareceu por completo. Isso é a barbárie, impulsionada por motivos torpes dos quais talvez também sejamos culpados. Ao enaltecermos o consumo desenfreado, por exemplo, como medida de ascensão social, como já advertia Néstor García Canclini, em “Consumidores e cidadãos”, ao fazermos do templo do consumo a lógica da cidadania, só vamos solidificar desigualdades com falsas ilusões.

“Ele vai te matar”. Assim fui assaltada (roubada, extorquida, juridicamente) no sábado passado, caminhando de manhã pelas ruas do meu bairro, o Flamboyant. Celular e dinheiro foram as exigências dos adolescentes empoderados, sem capacete, em uma moto. Enquanto o que dirigia proferia a sentença, o carona comparsa já estava a centímetros de mim com a mão na cintura, segurando a sua arma (de verdade ou de mentira?). Entreguei o que me pediam sem pestanejar: um celular velho e uma nota de vinte reais. E se eu não tivesse o que entregar? Tremi, como todos que já passaram por essa situação. Depois, tentei correr receando que me seguissem novamente quando vissem o “celular-bomba” que haviam roubado. Um nokia xpress vermelho, modelo 2008. Não era um iphone, não era um sansung galaxy, um nokia lumina, sei lá.

A “frase-sentença” proferida por eles ainda está ecoando em meus ouvidos. Uma violência simbólica. Uma morte anunciada sem condicionais. Veloz como nossos tempos. Sem concessões, sem contra-argumentos. Eu estava indo comprar os jornais do dia. Os mesmos que anunciaram na capa a morte de um rapaz de 23 anos em Botafogo, vítima de assalto semelhante. Ele reagiu. Não podemos reagir. Temos que engolir a barbárie e a “palavra-bala”.

Janeiro em Campos dos Goytacazes. A banca estava fechada, as ruas desertas na cidade, a situação que já conhecemos. Digamos que foi a crônica de um assalto anunciado. Mas o que de fato me pasmou foi constatar que os assaltantes adolescentes ostentavam a certeza do poder de matar. Sem restrições, sem ressalvas, sem atenuantes. Mato porque mato. Seu celular vai virar dinheiro para a minha droga. Por que não conseguimos reverter essa situação, por que os bancos escolares, quando ofertados como devem ser, não conseguem inibir tal situação?

Sei que, na semana em que o mundo assistiu estarrecido ao terror do pretenso direito de matar para vingar a questionável desonra de imagens sagradas, este fato corriqueiro talvez não merecesse o meu artigo da semana. Mas há algo que me parece comum nessas duas situações: a certeza de que se pode matar, porque a civilização é uma utopia.

(Analice Martins)

A foto que não explicou o fato

A foto publicada na capa do jornal “O Globo” no sábado passado, dia 3, quis dispensar explicações no texto que a acompanhou. A manchete dizia “Serra Pelada no Arpoador”. Os primeiros dias de 2015, no Rio de Janeiro, têm sido insuportavelmente quentes. Nada mais justo e democrático que as praias cariocas sejam invadidas por banhistas sedentos do prazer de se refrescarem à beira-mar, acompanhados ainda da quase inigualável beleza do pôr-do-sol, entrevisto da praia do Arpoador na Zona Sul. Um espetáculo sinestésico, convenhamos!

Aparentemente, nenhuma novidade nesse cenário que não sejam as transformações por que vem passando a sociedade brasileira nos últimos dez anos: fortalecimento da moeda nacional, oferta ampliada de educação, acesso das classes menos favorecidas a bens de consumo e sua consequente mobilidade territorial e simbólica.

Ainda que relativizemos cada um dos fatores mencionados ou que questionemos – com razão – um enganoso “empoderamento” das classes C e D, não podemos ignorar que a segregação em espaços marginalizados se desfez e que isso deve ser saudado. No Rio de Janeiro, as estações de metrô de Ipanema e Copacabana não só permitiram que os residentes nessas áreas pudessem se valer do transporte público para o trabalho no centro da cidade, por exemplo, como permitiu a reterritorialização de espaços públicos tratados como exclusivos de uma minoria. Refiro-me às praias da Zona Sul carioca em especial, mas também às ruas, às praças, à Lagoa Rodrigo de Freitas etc.

A chegada do metrô a Ipanema em 2009 intensificou essa sensação bairrista de posse das praias e impôs uma dinâmica de circulação e de entendimento dos usos possíveis dos espaços públicos que sugerem mais o confronto do que a inserção desejada. A evocação saudosista deste território de outrora parece-me ter sido a intenção explícita, embora não verbalizada por escrito, da foto a que me refiro, além da visão preconceituosa que me pareceu carregar.

No jornalismo informativo, tudo deve ser explicado, rezam os manuais de redação. A ausência de qualquer referência ao espaço geográfico de Serra Pelada, no Norte do país, da corrida desenfreada atrás do ouro prometido no garimpo selvagem e assassino é fato sem dúvida conhecido, documentado e até vertido para o cinema, mas é datado. Portanto, deveria ser contextualizado para que indistintamente fosse compreendido por leitores de qualquer faixa etária e condição sociocultural. Quando o jornal suprime a contextualização, cria a expectativa do pressuposto, que gera o compartilhamento de ideias, ou a inferência, que se abre para análises variadas.

A foto em cores pareceu monocromática. É marrom. Um esmaecimento do tom terracota. É meio ferrugem. Dependendo do horário, da luz natural e do ângulo em que foi tirada, talvez seja “autêntica”, mas, em tempos digitais e de photoshop, não me arrisco a nenhuma afirmação contundente.

A aproximação cromática ao garimpo de Serra Pelada é atributo insatisfatório para dispensar as analogias necessárias ao desenvolvimento da matéria, por mais que seja a única justificativa que, imagino, o jornal daria, se interpelado. Com isso, as intenções implícitas do jornal passam para o primeiro plano do interesse analítico. O que o jornal “O Globo” não disse explicitamente? Por que tentou camuflar o preconceito com a imagem muda?

Serra Pelada foi terra de todos. Logo, de ninguém. De migrantes de todas as partes do Brasil, de forasteiros, de estrangeiros. Serra Pelada pode ter sido vista como uma espécie de Eldorado, mas foi sobretudo o dantesco, o inferno dos desmandos e da barbárie.

Ao optar por não contextualizar a informação “Serra Pelada”, por não explicar as razões da comparação com a atual territorialização da Pedra do Arpoador, ao fazer parecer que o calor seria quase a única razão da analogia, o jornal (a mídia, em geral) revelou todas as suas intenções e também os seus preconceitos em relação à “natureza roubada”, ao bairro invadido, ao paraíso decaído, coisas desse gênero.

O marrom de Serra Pelada usado para representar o cenário atual do Arpoador e de suas cores sempre vibrantes deveria ter sido explicado com coragem e limpidez, sem subterfúgios metafóricos e sem subentendidos preconceituosos. Afinal, a foto, no jornal, não serve para explicar o fato?

(Analice Martins)

Quando a imagem inventa a realidade

Sobre o filme “O abutre” (“Nightcrawler”, no original), de Dan Gilroy, muita coisa pode ser dita. São muitas as perspectivas pelas quais essa recente produção pode ser analisada. Filme bom é assim, não pode se render a um reducionismo crítico. Tem que ir além das nossas primeiras impressões e tem que ficar ali nos perseguindo em imagens e cenas, coagindo-nos a dizer alguma coisa.

A trama narrativa apresenta a curiosa inserção do personagem Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) no mercado negro das informações e das imagens sensacionalistas para telejornais locais nos EUA. Ambientando em uma noturna e soturna Los Angeles, estrategicamente fotografada por Robert Elswit, a história progride de forma assustadora. O desempregado Louis se vale de expedientes escusos para sobreviver e, desde o início, não esconde a faceta doentia e cruel na obstinação do reconhecimento, mais do que da própria sobrevivência. Logo em uma das primeiras cenas, o personagem diz a que veio. Surpreendido roubando arame de uma cerca, aparenta frieza e cinismo para, em seguida, matar a vítima e roubar seu relógio. Esta cena inicial desenha, sem concessões, o personagem.

Homem metódico e solitário, sem escolaridade formal, desempregado e abastecido de informações da internet, entra no mundo das imagens sujas e sangrentas, captadas por “freelancers” que vendem, sem escrúpulos, o seu ineditismo para telejornais sensacionalistas disfarçados de bom mocismo, mas acorrentados à disputa pelos índices de audiência de um público igualmente interessado na “notícia fresca”.

Munido inicialmente de uma câmera amadora e de um rádio de polícia num carro velho, Louis cria estratégias inteligentes, acrescidas de ousadia e oportunismo patológicos, para chegar antes aos locais de acidentes, assaltos e tragédias. De preferência sangrentos. É com a desenvoltura dos grandes estrategistas que chega ao universo das emissoras, vendendo de forma amadora as imagens captadas na rua. O discurso que utiliza para explicar suas ações é repleto de clichês de empreendedorismo barato que só reforçam a ácida crítica que o filme, como um todo, faz da sociedade impregnada da “fome do real”, de que fala a pesquisadora Beatriz Jaguaribe, em “O choque do real”. Uma sociedade refém das imagens que fabrica e que devem ser, sobretudo, hiper-realistas para provocar uma impressão de realidade mais eficaz do que o próprio sangue.

É nessa teia sensacionalista e espetacularizada, que transforma a vida em um filme de ficção, ainda que ancorado em um discurso de pretensa veracidade, que se abre a sórdida relação entre mídia e sociedade. Talvez muito mais do que isso. Entre as imagens e a realidade fabricada por elas, das quais somos todos reféns. A busca desenfreada pela imagem que hiperdimensione a realidade não cumpre apenas a necessidade da informação transparente e direta. Essa é uma condição menor no filme de Gilroy. O telejornalismo denunciado pelo filme, magistralmente nos limites da (in)verossimilhança, é um mundo em que a velocidade da tecnologia, mais do que a potência do motor do carro de Louis, encurta as distâncias.

Quando percebe a dinâmica deste funcionamento e se depara com a cúmplice ideal, Nina (Rene Russo), a veterena editora de telejornais, ambiciosa e de ética duvidosa, Louis entende a lógica do mercado negro das imagens que engendram a realidade. E dele se torna um exímio criador, forjando, mexendo nas cenas dos crimes, antecipando-se à polícia na captura dos fatos (no caso, das imagens), roteirizando trajetos e movendo personagens como se fosse o diretor de um filme de ficção.

Talvez essa seja a melhor definição de “O abutre”: um filme sobre a potencialidade da criação ficcional, vislumbrada pelo ângulo comprometedor da edição das imagens. Onde a realidade? Onde a ficção? Quais as fronteiras que as distinguem em uma sociedade que se quer refém das torrentes de imagens? Nesse ponto, o foco do diretor é certeiro.

De um ponto de vista psicanalítico, o filme pode render boas análises sobre o comportamento psicopata do personagem, sua cegueira em relação ao outro, seu comportamento inescrupuloso. Já de um ponto de vista sociológico, desnuda-se a lógica mercadológica, ditando as regras do mercado de imagens que sacia a “fome do real” de uma sociedade afundada na sua incapacidade de discernimento ético. Mas é pelo ponto de vista da Teoria da Literatura que o filme se mostra mais inteligente e perspicaz. Ao diluir intencionalmente as fronteiras entre realidade e ficção, ao fazer da imagem a coisa em si e fabricá-la segundo a ótica de um “narrador”, “O abutre” diz mais do que a sanha pelas carnificinas contemporâneas. Subverte a servidão da imagem jornalística ao fato real e aponta para a liberdade criativa que a imagem (seja ela produzida pela máquina, seja pela palavra) tem sobre a realidade.

É isso: a imagem pode inventar a realidade.

(Analice Martins)

As varinhas do Natal

 

Talvez seja com algum atraso que eu faça esse comentário sobre as varinhas, mas confesso que não as vi no início deste ano. Nem me lembro se as “selfies” já eram a febre que são no momento. Sem redes sociais, sem iphone e com celulares bem modestos, talvez não tenha me dado conta de que, além da prótese, como diz um amigo meu, que todos (alguns mais do que outros) carregamos no dia a dia, agora há também a varinha acoplada a celulares e máquinas fotográficas que as pessoas empunham na busca obsessiva da autorrepresentação espetacularizada.

Confesso que tomei um susto, nesse meu primeiro fim de semana de recesso, fora dos muros do IFF e da UENF, quando vi, em Búzios, casais e grupos andando com o que julguei desavisadamente ser uma antena. Ledo engano. A varinha agora forma uma trindade com os celulares e as redes sociais.

Alguém há de argumentar que os tripés sempre existiram, auxiliando os viajantes solitários e dispensando o incômodo de solicitar a estranhos ajuda para uma foto. Mas eram fixos, deveriam ser colocados, o “time” do clique programado e o enquadramento suposto. Como tudo que é sólido e fixo já se desmanchou no ar e vivemos o império da mobilidade e da velocidade, varinhas, que imagino se chamem suportes para “selfies”, asseguram a independência dos fotografados, o melhor ângulo, os sorrisos e poses milimetricamente estudados para a subsequente narrativa de si articulada pelas redes sociais.

Fora dessa dinâmica, para muitos, a vida parece inexistir. Em épocas festivas como o Natal em que o congraçamento é a palavra de ordem, acho tudo muito cansativo. Não há como conversar, procurar saber do outro que está ao seu lado, nem comer em paz os quitutes de tantas confraternizações, pois o registro fotográfico e a sua narrativa instantânea e espetacularizada interrompem a naturalidade de qualquer evento. Poses, poses, poses. Flashes, flashes, flashes. De muitas máquinas e celulares. Muitas vezes e em busca da “selfie” perfeita.

Em recente reunião de fim de ano, mal consegui provar as delícias oferecidas, tantas eram as fotos. Como não vejo nenhuma depois, já que sou “out” total, a menos que me enviem alguma delas por email ou me interrompam novamente para mostrar, na tela, a vida nossa de cada dia, fico muito amuada em período em que o OUTRO deveria ser, para os que se dizem cristãos, a razão maior do encontro. Reúnem-se para quê? Quase não vejo ninguém conversando, é um senta-levanta interminável para as fotos.

Sempre supusemos que a fotografia e a imagem em movimento fossem o registro mais fidedigno da respiração de nossas vidas. Não creio que tal função ainda se sustente. A obsessão documental e expositiva interrompe a pulsação normal da vida, inventa um outro tempo, outros cenários e situações, e as fotos têm que cair na rede para saciar a sanha de si mesmo. O outro é um acessório.

Do ponto de vista sociológico e da estetização da vida, tudo isso me interessa muito. Já me questionaram, entretanto, como posso orientar pesquisas que tratam desses fenômenos, como redes sociais, blogs e internet, se não sou uma usuária de “verdade”. Ou seja, como posso falar de facebook, se não tenho um perfil, como podia falar de blogs se não tinha um até dois anos atrás? Acho que nada disso me desautoriza. Os usuários, quase sempre absortos e sugados pela dinâmica dos usos, nem se percebem, não se veem, cegam-se diante do fascínio da comunicação instantânea e enredam-se na teia das narrativas de si mesmos, fabulam para si personagens com que querem vestir-se na vida real. É quase desconcertante o abismo que às vezes separa o ordinário do cotidiano do mundo fictício que todos passam a habitar.

Sei que esse texto está muito rabugento para as celebrações natalinas, mas é porque, nesse período mais do que em qualquer outro, as pessoas deveriam querer ver além de si, darem-se ao encontro, ver no OUTRO o outro e não a si mesmos.

Desejo a todos um Natal com menos flashes, menos poses, menos próteses e menos varinhas.

(Analice Martins)