Depois do carnaval

 

Escrevi este depoimento atendendo originalmente a um pedido de reflexão acerca do cenário da educação básica na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), o que envolve as esferas municipal, estadual e federal. Cada uma tem suas particularidades e idiossincrasias, embora um grande objetivo comum: oferecer formação cidadã a crianças, adolescentes e adultos, capacitando-os seja para o ingresso na vida universitária, seja para o mercado de trabalho.

O professor atua na área educacional. De certa forma, é um profissional da educação, mesmo que tal área envolva competências mais amplas do que as exigidas apenas à docência. Meu olhar é, portanto, relativo e circunscrito a um local de enunciação definido. Creio que isso não o invalide, pois a realidade nunca se nos apresenta em sua totalidade, mas tão somente a partir de ângulos e perspectivas.

O texto que segue não é uma análise técnica com dados estatísticos. Tampouco são achismos infundados. É, sobretudo, uma nota de lamento e pesar. Ei-lo:

A condição topográfica de planície não deveria nos aprisionar à platitude de horizontes. Nas últimas duas décadas, nossa cidade de fato se verticalizou, em especial no que diz respeito à construção civil. O que nossos olhos divisam quando nos aproximamos de sua entrada é um cenário bem distinto do de anos atrás. Muitos prédios e construções opulentas nos dão a impressão de que vivemos uma realidade de pujança. Mas, de perto, tudo se relativiza e desmorona. O crescimento esperado como consequência do favorecimento dos royalties, que nos coloca como o 13º maior PIB do Brasil, não alavancou nosso cenário cultural nem educacional. Quantas salas de teatro temos? Quantas de cinema? Quantas de música e exposição? Quais as políticas públicas de fomento à produção artística? Aliás, o que entendemos por arte? Quantas bibliotecas públicas temos por regiões ou bairros? Qual o piso salarial dos professores do município? Qual o repasse de verbas efetivo à educação? Qual o estado de nossas escolas? Como se davam as eleições para escolha de diretores das escolas municipais? Qual a real carência dos quadros de professores? Até quando ficaremos reféns de uma política de contratação e sucateamento? Onde estão as vagas dos professores concursados para a prefeitura? Qual o investimento em sua formação e capacitação?

De que nos ufanamos tanto afinal? Campos dos Goytacazes perdeu o bonde da história há muito. E ainda mais descarrilado estará esse bonde quanto menos fizermos por uma educação pública de qualidade. O ensino público, gratuito e laico, de qualidade, deveria ser um direito de todos e uma das principais diretrizes de qualquer gestão municipal. Às vezes, é preciso reafirmar o óbvio, sem medo de ser feliz.

O ensino público, se possível em horário integral, com condições reais de manutenção de alunos e professores nas escolas, poderia nos redimir da estagnação em que nos encontramos no plano educacional e cultural no município. Só a educação pública pode promover a convivência com o heterogêneo, o múltiplo e o díspar. É, então, o único caminho para nos verticalizar de fato. Deveria ser um norte a ser perseguido obstinadamente.

Atuo na esfera pública federal de ensino, acredito no heterogêneo, no diverso. Acredito nos embates. Luto para reproduzir a experiência feliz que tive enquanto aluna do ensino público em Campos durante o meu já distante ensino médio. Aquela experiência sacudiu o meu mundinho pequeno-burguês e afortunadamente letrado. Aquela experiência me fez ler o mundo com outros olhos. Esses que só uma educação pública de qualidade é capaz de nos oferecer e que desejo para todos.

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NOTA: O carnaval, na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), ocorreu, em 2014, entre os dias 25 e 27 de abril.

O futuro da escola e a escola do futuro

Li, com desconfiança, há algumas semanas, a entrevista do neurocientista americano Stephen Kosslyn nas páginas amarelas da revista Veja. As discussões eram acerca da universidade do futuro e do projeto “Minerva”, a universidade 100% on-line de que ele é reitor desde o início de 2013. Este ambicioso projeto de educação na internet, pensado por uma turma egressa do Vale do Silício e financiada pelos mesmos investidores do Twitter e do eBay, parte do pressuposto de que o lugar da universidade e do professor no processo de ensino e aprendizagem sofreu deslocamentos a partir da revolução tecnológica do século XXI. Até aí tudo bem. Diagnóstico consensual.

A novidade não me parece estar, no entanto, como declara Kosslyn, nas estratégias de ensino que conduzam a aprendizagem por caminhos mais dialógicos e interativos, mais eficientes de acordo com a ciência cognitiva do que as repetições exaustivas e o apelo mnemônico excessivo. A construção do raciocínio crítico e imaginativo bem como de recursos associativos pode potencializar a inteligência humana ou, segundo Kosslyn, “exercitar os músculos mentais”. Tais conclusões da ciência cognitiva envolvem estudos nas áreas da neurociência, da psicologia e dos sistemas de computação no intuito de compreender o processamento de informações pelo cérebro. Tudo isso, embora muitas vezes distante da prática efetiva da realidade escolar, já estava presente na maiêutica socrática, no parto das ideias. Se a neurociência tem comprovado recentemente que o cérebro ativa áreas distintas para a construção de respostas diante de desafios, já o sabia a Antiguidade Clássica. Comentei em artigo do ano passado, “Os poderes da ficção”, a pesquisa publicada, na prestigiada revista Science, intitulada “Ler ficção literária melhora a teoria da mente”, que aponta conclusões semelhantes: o cérebro precisa ser desafiado pela falta de linearidade, pela quebra de expectativas, pelo não-dito, pelo estranhamento.

O que me incomodou na entrevista do pesquisador foram duas afirmações. Uma, que espero ter interpretado de forma equivocada, sobre a importância dos livros. Afirma Kosslyn que “a universidade voltada para o futuro não é fundamentada em livros, mas em ferramentas cognitivas. Ela dá aos alunos a bagagem intelectual para que consigam se adaptar a qualquer cargo, criar e ter sucesso pelo resto da vida”. Se ele se referiu à dimensão física do livro, é até compreensível, mas, se minimizou a importância da formação e da construção do conhecimento pela leitura em proveito de habilidades tais como comparar, associar, derivar, contrastar, resolver, penso que nenhuma “ferramenta cognitiva” deva prescindir das competências formativas. Podem até estar dissociadas no desempenho de algumas funções, mas não na formação escolar em qualquer segmento, nem mesmo no universitário.

Mais irritante me pareceu a pouca relevância dada ao convívio social: “Vejo o agrupamento de estudantes em um câmpus como algo cada vez menos importante”. Baseado na pesquisa do antropólogo inglês Robin Dunbar, assegura que, para que todos se conheçam em um grupo, ele não pode ter mais que 150 integrantes e que este seria o número ideal para a socialização. Portanto, Kosslyn prevê que a procura por universidades como Havard, Yale e Standford se dará, sobretudo, por conta do encontro com colegas interessantes e das redes de contatos estabelecidas. Enfim, um cenário tão matemático, tão previsível, tão explicável, quanto, para mim, estéril.

No domingo passado, no documentário “Educação.doc”, exibido pelo programa “Fantástico” da Rede Globo sobre a realidade das escolas públicas brasileiras, a filósofa e poeta Viviane Mosé falava entusiasticamente sobre o foco desta escola do futuro estar no convívio com o heterogêneo, o diverso, no embate dialógico, em que, digo eu, o professor deveria ocupar uma função primordial seja pela “expertise”, seja pela promoção das habilidades já referidas. Uma opinião que me pareceu bem mais acertada, já que de fato as informações estarão todas ao acesso de um clique, dispersas e democratizadas.

O futuro da escola não depende apenas de esforços locais e nacionais para construção de políticas públicas condizentes com distintas realidades educacionais, mas de um esforço de reflexão conjunta e de uma crença na sua urgência transformadora, na sua potência para alavancar e catapultar os indivíduos. Na escola do futuro, deveria haver, portanto, o espaço para o convívio amplo e irrestrito, diverso e plural, capaz de, pela alteridade, formar consciências críticas voltadas para o bem estar coletivo. Nela, deveria haver sempre um espaço inquestionável para a literatura, cujos poderes tenho insistentemente discutido. Por isso, faço minhas as palavras de Suzana Vargas, professora, escritora, poeta, fundadora da Estação da Letras, em entrevista à Revista O Globo também de domingo passado: “Tudo que fui, sou ou serei devo às descobertas que ela – a literatura – me proporcionou, sejam existenciais, políticas, amorosas ou profissionais (…) Os livros me salvaram. A literatura sempre explicou o mundo para mim. Quero levar esta espécie de fé a mais gente”.

(Analice Martins)

Lanterna mágica

Para nossos tempos velozes e furiosos, a lanterna mágica é um brinquedo démodé, estático demais, pouco interativo, embora tenha sido uma invenção bastante revolucionária, constituindo uma das formas rudimentares do cinema. Toda criança, nascida no século XXI, deveria ganhar uma lanterna mágica antes de qualquer dvd, tablet ou ipad. A experiência de ver o mundo em câmera lenta, em ritmo slow, por quadros cuja animação dependeria da sua imaginação em vez de algum dispositivo, representaria uma certa fantasmagoria sobre o mundo, forçando-a à contemplação antes da interatividade obsessiva.

A lanterna mágica está para a cidade moderna, assim como o caleidoscópio, talvez, para a cidade pós-moderna. Nossa memória pode assumir, no entanto, as duas funções. Pode seccionar e congelar ou pode embaralhar, em profusão de cores e associações, o que a película das retinas reteve em viagens.

Não gosto de filmar quando viajo. Provavelmente, por alguma cafonice do espírito. Mas fotografo.  Com máquinas digitais, não há mais poses, posições ou ângulos, nada escapa à fúria vertiginosa das lentes. Depois, sem nenhum incômodo, descartamos tudo que não nos interessa em busca da imagem perfeita. O descarte é a razão de ser da fotografia digital. Com isso nos tornamos menos atentos às cenas a serem capturadas. A máquina o fará por nós. Por um lado, isso é ótimo. Teremos um repertório de imagens à nossa disposição para reconstituirmos o passo a passo dos lugares visitados. Por outro, é um recurso danoso, pois torna nossa percepção preguiçosa e pouco aguda. Há quem se contente apenas com o álbum físico ou digital construído depois. Ou melhor, há quem só viaje porque o facebook existe.

Drummond tem um lindo poema chamado “Lanterna Mágica” em que Minas Gerais aparece em quadros pontuais, recortando sua memória afetiva dos lugares. Cada cidade, um poema. De cada poema, saltam imagens poderosas de que só a palavra – como tradução e invenção da realidade – seria capaz, muito mais do que uma imagem produzida por recursos técnicos ou tecnológicos.

Vou fazer aqui a lanterna mágica de minha viagem pela Rivièra Francesa e pelos Alpes Marítimos. Só com palavras, como o poeta. Mas tão-somente como exercício da minha memória afetiva de cronista e sem nenhuma pretensão literária:

I- As cidades encravadas nas montanhas, despencando sobre as encostas rochosas nem sempre parecem reais. Saint-Paul- de Vence, Biot, Èze, Mougins, Grasse sustentam-se no tempo, muito mais do que nas pedras. Algumas encasteladas por muros medievais e reféns do turismo avassalador. Suas existências, para mim, só saíram de certa fantasmagoria com o tilintar de talhares se descruzando à hora do almoço, quando o badalar dos sinos de uma igreja se fazia ouvir altivo, quando, pios, os fiéis ouviam as palavras do padre ou quando crianças chegavam das escolas, mãos dadas com os pais. Ali o cenário se desfazia, e os bastidores da vida real se insinuavam sorrateiros. Tudo quase sempre entre pedras.

II- É interessante ver Matisse, Renoir, Chagall, Léger, Braque e Picasso em museus que procuram reconstruir a história ou a passagem desses artistas em suas cidades. Há quem possa torcer o nariz e dizer que não estão lá as maiores obras desses pintores, mas estão suas histórias ou a reconstrução delas: esboços, desenhos, as naturezas mortas do início das trajetórias e as que lhes deram notoriedade, experimentos com outras linguagens, como a escultura e a cerâmica, o flerte com a literatura. Todas essas visitas me emocionaram. Registro as duas últimas: a relação de Braque com a literatura, seus desenhos para obras de vários escritores e seu caderno com desenhos e reflexões concisas. Às vezes, não mais do que uma oração sobre a criação artística. Tais como: “Eu adoro a regra que corrige a emoção” ou “É preciso escolher – uma coisa não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e verossímil”.  Picasso em Antibes. O que é o museu, que antes era Grimaldi e que passou a se chamar Picasso, em função das obras que o pintor deixou no período em que pôde usar suas instalações como ateliê? Estão lá, por exemplo, “Ulisses e as sereias” e “A alegria de viver” (“La joie de vivre”). O castelo despenca sobre o azul das águas de Antibes.

São museus que entrelaçam vida e obra à cidade e que recuperam os contextos originais da produção desses artistas.

III- Leituras do ”Le monde”: O êxito dos liceus franceses; a responsabilidade do governo francês no genocídio de Ruanda há 20 anos; o livro “L’Algèrie sur le vif” do fotógrafo Ramzy Bemsaadi; livros que discutem o que leva um homem a sacrificar tudo para dar ao mundo uma obra, romances que exploram o mistério da vocação artística , em especial, a literária.

IV- Chagall disse que ele era azul, como Rembrandt era marrom. A Rivièra Francesa é azul assim como o vinho, onipresente às mesas, é o rosé.

(Analice Matins)

A arte cria o fato

De maneira geral costumamos entender o objeto artístico como a representação de fatos da realidade concreta ou como a materialização da atividade humana da imaginação. A manifestação artística, nesse sentido, estaria atrelada a eventos que a precedem. Sua natureza, por mais verossímil que pareça, não é real. Trata-se de uma eficiente estratégia de fingimento por meio de uma linguagem sígnica.

A autonomia que Aristóteles conferiu a este procedimento na Antiguidade Clássica é até hoje responsável pelo redimensionamento da legítima importância social e estética da arte. Aristóteles a retira do limbo platônico, da condição de mera cópia da realidade, e a reposiciona como uma “virtualidade criadora”. Então, para as teorias ocidentais, a arte é um mecanismo de criação e não somente de espelhamento.

Criar, portanto, seria conferir ilusão de realidade não apenas ao que já foi ou está acontecendo, mas ao que pode jamais ter acontecido. Isso faz da arte uma atividade perigosa e autônoma. Talvez, por essa razão, Platão tenha expulsado os poetas de sua República. A criação artística remete ao emprego de um conjunto de técnicas, o que a afasta do espontaneísmo e do naturalismo corriqueiros. Quando se assemelha demais à natureza, aos fatos, objetos e sentimentos que nos rodeiam, foi porque o artista soube, como já cantara Bilac, “disfarçar na forma o emprego do esforço”. Quanto mais “natural”, mais “artificial”, poderíamos concluir. Assim são os artifícios empregados pelo artista que podem conduzir a alma do observador a elevados estados de reflexão. Logo, a arte é absolutamente necessária.

Não há nada de novo nessas minhas considerações, mas me sinto impulsionada a dizê-las toda vez que leio ou ouço algo como “o cinema cria o fato, o evento”. Creio ter sido mais ou menos isso que dizia um canal fechado da televisão francesa. Eu sequer estava atenta ao que se passava, mas a proposição me chamou a atenção para a associação que fiz no título desta crônica.

Estou em Nice, cidade do sul da França banhada pelo Mediterrâneo, a mais importante da Côte d’Azur, célebre pelo sol, pela luz, pelas cores e pelos artistas que passaram ou moraram por aqui.  Seu mar turquesa não deixa margens a dúvidas. Dois grandes museus guardam parte das obras de Marc Chagall e de Matisse. Nas redondezas, em Biot, há o dedicado à obra de Fernand Léger; outro, em Antibes, dedicado à parte da obra de Picasso; a Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence, reunindo, além de Chagall e Léger, Braque, Miró etc. Cézanne, em Aix em Provence. Enfim, artistas que fizeram parte do que hoje chamamos de vanguardas históricas, responsáveis por “épater les bourgeois” e por criarem um divisor de águas no mundo das artes plásticas, em especial da pintura, no início do século XX.

Não à toa os artistas brasileiros Tarsila do Amaral, Anita Malfati, Portinari depois, todos que reinventaram antropofagicamente a pintura brasileira, o fizeram a partir do contato direto com as vanguardas europeias, conferindo às nossas artes uma circulação universal, sem entrincheiramentos nacionalistas e sectários. Ou seja, a dimensão expressa adequadamente no título de um ensaio de Silviano Santiago: “Apesar de dependente, universal”. Reflexão complementar à ideia de originalidade como um processo de apropriação criativo tributário do antropofagismo modernista.

Tais considerações são apenas um pretexto para dizer, sem cegueiras colonizadoras, que a experiência do contato “direto”- tanto quanto possível – com as obras desses artistas é “bouleversante”, isto é, perturbadora. Para além da mediação da reprodução técnica, das fotos ou dos arquivos digitais, a experiência da cor, do relevo das camadas da tinta, das dimensões da tela, do volume das esculturas, do risco dos desenhos, é insubstituível. Sei que é temeroso dizer isso em tempos de democratização digital e de acesso a bens simbólicos remotos, sem parecer pernóstica. Mas é verdade, ora! Para tanto, não é preciso apenas se deslocar para fora, mas também para dentro, como fizeram os modernistas em suas caravanas ao interior do Brasil, cansados de verem apenas por tabela, sentirem pelo que lhes contavam, como disse o poeta Mario de Andrade em “Acalanto do seringueiro”. Mais do que se deslocar, é preciso, como advertiu o outro Andrade, Oswald, ter olhos livres para ver. É preciso se deixar assombrar.

Pois foi assim que me senti ontem no museu Marc Chagall, diante daquelas telas acintosamente coloridas, para lá de todos os “ismos”. Muitas com temas pouco realistas, mas incrivelmente reais. Sim, a arte cria o fato. Os temas da revolução bolchevique, das guerras, da cidade natal e os bíblicos estão lá nas obras desse russo naturalizado francês. Uns como outros, acontecidos ou não, são expressivamente reais. Pelo emprego da técnica aliada à subjetividade do artista, tudo é real, tudo é verdade: o paraíso, Adão, Eva, a criação do mundo segundo a mitologia bíblica. Tudo também é vivamente erótico, como a série “O Cântico dos Cânticos”.

Por isso, ainda quando surreal, a arte nos faz crer como possível o que é representado em cores, traços, formas. A arte, definitivamente, cria o fato.

(Analice Martins)

A carta e o tempo

 

As cartas – como as escrevíamos até algumas décadas atrás – deixaram de existir. Não apenas porque abandonaram a forma manuscrita, mas sobretudo porque perderam sua relação com o tempo da espera. A celeridade contemporânea abomina qualquer retardo de informações, relatos e pedidos. A carta como recurso comunicativo ficou à margem do tempo. A migração de suas funções para outros meios e suportes roubou-lhe um certo status. Quando manuscritas, parecem peças arqueológicas.

A carta é um gênero textual que, podendo valer-se do modo descritivo, narrativo ou argumentativo, organiza um interessante quadro de comunicação, no qual o interlocutor permanece silenciado até que, assumindo a condição de locutor (emissor), estabeleça um moroso diálogo: aquele em que cada um fala a seu tempo, ou melhor, a cada carta, a qual, por sua vez, inclui o tempo de sua gestação e de seu envio. As cartas são deliciosamente lentas. Mesmo que agilizemos as respostas, elas ainda cumprirão o tempo dos correios e das adversidades físicas de seu trajeto. A carta pode não chegar e, se chegar, pode não ter uma resposta imediata. A carta definitivamente é offline.

Pois é justamente essa “não sincronia” que constitui sua essência comunicativa. Podemos ansiar pelas respostas, imaginá-las, inventá-las, não as lermos. A presença física de uma carta não é impositiva como um torpedo, uma conversa no facebook, no whatsapp ou em um chat com aqueles insuportáveis barulhinhos a nos cobrarem respostas na velocidade de um suspiro. As cartas são silenciosas. Nelas, as respostas não podem ser monitoradas pelos que as escreveram. As cartas só se materializam quando abertas, podendo permanecer para sempre suspensas e enigmáticas, quando lacradas. Se perdidas, extraviadas, queimadas ainda fechadas, levam consigo gestos comunicativos talvez irreproduzíveis. Daí também o seu mistério.

As epístolas gozam de prestígio na literatura, além de ocuparam lugar de destaque no Novo Testamento. Como professora, acho o referido gênero importantíssimo por inúmeras razões, como, por exemplo, a necessidade de adequação do registro linguístico para o cumprimento de sua eficiência. Fundamental saber para quem escrevemos e que proximidade ou distância devemos empregar. Importante também estabelecer sua natureza: descritiva, narrativa, persuasiva, exortativa etc. Forjar uma situação comunicativa, por intermédio da escrita de uma carta, parece-me um importante exercício de expressão e de produção textual. Uma carta pode ter inúmeras funções: ser meramente um recurso expressivo que dê vazão às nossas emoções; ser uma estratégia apelativa, de convencimento; ser a matéria própria de nossas reflexões.

As cartas podem ter um caráter documental e comprobatório, mesmo quando profundamente intimistas. A sanha pelo biográfico cria uma mitologia dos baús, das gavetas escondidas, dos fundos falsos, dos arquivos pessoais. Aquilo que foi comezinho ou apenas uma troca de confidências pode tornar-se significativo registro linguístico, histórico, cultural. Uma carta pode valer ouro. Lamento pelos que nunca tiveram a experiência temporal de sua gestação, remessa ou espera. O tempo de sua travessia também nos atravessa e transporta, tornando-nos mais imaginativos e menos reativos.

Digo tudo isso, pois estou engasgada pela vontade de escrever uma: esta que faço agora imaginando poder abraçar com palavras minha interlocutora querida que já partiu deste mundo. Cartas para os que já se foram, se tornadas públicas, são cartas com múltiplos destinatários. Minha mãe faria 80 anos hoje, dia 2 de abril, e, na impossibilidade de cruzar a varanda de sua casa e acordá-la com um beijo na testa, fico fingindo para mim mesma que ouviria sua voz agradecendo encabulada os muitos festejos que sempre recebeu. Eis a cartinha:

“Mãe, meu mundo ficou irremediavelmente mais triste sem você. A senhora nos ensinou que a morte era só uma passagem e que a vida, em abundância, era outra que não a da matéria vã. Mas, mãezinha, é tão difícil ter ficado sem a sua voz, os seus abraços e carinhos, sem a sua presença acolhedora. Não devo ter retido com atenção seus ensinamentos. Talvez, por isso, a saudade insista em me rondar dia após dia. Coloquei uma foto sua em uma das estantes de meu escritório, onde invariavelmente passo longas horas. Ficou em uma posição acima dos meus olhos, pois, assim, quando os levanto para pensar mais profundo, sorrir ou suspirar, é sempre do mais alto que você me olha e me guarda. Foi uma foto que ganhei de uma grande amiga da família. Seus olhos estão contemplativos e serenos, como sempre, um meio sorriso esboçado nos lábios, um tom docemente grisalho emoldura o seu rosto. Olho para ela todos os dias e lembro-me, como agora, da crônica de Drummond – “Fala, amendoeira” – que a senhora cedo me fez ler, registrando a beleza do neologismo verbal criado pelo poeta para dizer como deveríamos encarar a vida e a passagem do tempo: “Outoniza-te com dignidade”, diz a amendoeira ao poeta. Ah, mãezinha, outra não foi sua trajetória. Quisera eu saber assim viver.

(Analice Martins)