Um lugar para a literatura

Este artigo é uma tentativa de repensar o lugar que deve ser ocupado pela literatura nos vários exercícios da cultura. Mordi a isca plantada por meu colega de espaço, Sérgio Arruda, em suas reflexões da última sexta-feira, no jornal Folha da Manhã. Entendi que sua advertência para que não deixássemos a literatura sumir dos currículos escolares e das academias de letras era um convite para que discutíssemos, a partir da triste constatação de seu enxugamento, a importância que tem, enquanto prática cultural, na formação crítica dos sujeitos.

Há, sem dúvida, princípios conceituais que devem ser esclarecidos de antemão a fim de que esta reflexão possa chegar a algum lugar. Para facilitar, descartarei a ideia de entretenimento que tanto a literatura quanto a cultura em geral podem carregar sem culpas. Ou melhor, ficarei sobretudo com uma de suas acepções no dicionário Aurélio. Entreter é deter-se, demorar-se, delongar-se. Deixarei de lado as ideias, embora não contraditórias, de divertir-se e recrear-se. Entreter também pode ser iludir ou enganar. Eis aí o perigo, quando a única intenção de práticas literárias e eventos culturais – o atual atoleiro da planície goitacá – é tão somente esta: enganar os sentidos, distrair a percepção e o julgamento.

Dizer que a literatura é uma prática cultural implica, para que não resvalemos em beletrismos, dimensionar a cultura como um conjunto de modos, usos, costumes, crenças, cultivados e transmitidos, por uma comunidade, cidade ou nação. Cultura, portanto, não é apenas o acúmulo de informações que a memória pode reter sobre quaisquer áreas do conhecimento. Esta é uma visão elitista e ignara. Do ponto de vista antropológico, cultura é um modo de intervenção na natureza, na geografia, no território, na língua, nas expressões artísticas.

É interessante observar que, mesmo que tal apreensão do conceito de cultura esteja disseminada em materiais escolares mais oxigenados, parece não vingar, pois esbarra em posições cristalizadas, redutoras e excludentes que a circunscrevem com adjetivos: alta, baixa, erudita, popular, massificada etc. Escola e professores debatem-se naquilo que pode ser entendido, por exemplo, como um uso linguístico cotidiano de uma comunidade ou território, e se tal manifestação pode adentrar a cena escolar. Ora, a escola é feita “de, para e com” alunos. Portanto, blindá-la contra as manifestações cotidianas da música, da tv, dos HQs é um tiro no pé. Ou a escola toma para si a função precípua de fazer pensar e discernir acerca do que nos rodeia ou permanecerá inoperante diante da realidade.

Neste sentido, concordo com meu amigo Sérgio Arruda que, aliás, por várias vezes, já discorreu com muita propriedade sobre as noções de cultura. Concordo que, ao alijar de seus domínios a literatura, a escola contribuirá para a “morte” de uma vigorosa forma de nos tornar sujeitos de nossos modos de falar, pensar, criar. Na literatura, viajamos sem sair do lugar, nela podemos nos conhecer por intermédio do outro, de outras vozes, outros cenários, outros usos da linguagem, outros registros. Nela podemos nos fantasiar, nos espelhar, nos metamorfosear. Não penso que a literatura tenha, obrigatoriamente, funções messiânicas, penso mesmo que possa não servir para nada objetivamente que não sejam a fruição estética e a diversão. Mas não podemos nos esquecer de que ela é uma senhora poderosa, que nos acompanha há muitos milênios e que não carece de instrumentos que não sejam as palavras oral e escrita. A literatura não precisa do pigmento da cor para pintar o céu de azul ou até de verde, nem do som para nos embalar, nem da tecnologia para criar uma imagem. A palavra lhe basta em princípio, porque, no princípio, sempre foi o verbo. O que mais se agregar a ela pode até ser bem-vindo, mas não será indispensável. Por isso, ela é poderosa, tem potencial explosivo e revolucionário, mas, se como sujeitos ou instituições, não a entendermos desta forma, vamos jogá-la para baixo do tapete até nas academias de letras onde deveria ter assento privilegiado.

A salutar exigência de diálogos entre disciplinas e entre linguagens pode ter contribuído para o abandono a que está relegada a literatura nas instituições de ensino, desprezando o auxílio que pode oferecer à formação crítica de milhões de jovens. Como vivemos sob o império do audiovisual, a literatura pode parecer a crianças e adolescentes algo anacrônico, fora do tempo, quando, na realidade, é a própria diacronia, fonte de estudo de fenômenos linguísticos e questões histórico-culturais na travessia do tempo.

É difícil não resistir à tentação de assistir a filmes, ouvir canções ou colecionar imagens em vez de ler os livros que deveriam entreter-nos, fazer-nos demorar, reter, fixar, já que carregam as culturas de nossa gente e de outras gentes, carregam seus modos de ver, fazer e usar, seus costumes, suas práticas. Mais difícil ainda tem sido perceber que, embora descentrada na cultura contemporânea, sem primazia alguma, é a ela que devemos retornar, como matriz das articulações exigidas pelas orientações curriculares da Educação Básica, sobretudo do Ensino Médio, para entender suas especificidades e poder fruí-la sem engasgos.

 (Analice Martins)

A queda do paraíso

“Tudo desmorona, tudo cai hoje”, assim reage Sonja, dona de uma loja de lingerie numa galeria decadente do centro de Buenos Aires, quando o proprietário de uma papelaria, seu vizinho há vinte anos e amante fortuito do passado, decide vendê-la.

É a ilusão perdida, são as ruínas do sonho europeu, sequer entrevisto na fotografia, que o filme O abraço partido (2004), de Daniel Burman, retrata. Nenhuma visão pujante, nenhum cenário europeizado, apenas o desejo da cidadania europeia, representado pela busca do passaporte polonês. O encontro com as raízes ignoradas sinaliza, simultaneamente, uma porta de saída e uma de entrada para o jovem Ariel Makaroff, que carrega, no siso e na tristeza, a narrativa do abandono pela figura paterna. O passaporte lhe conferiria a possibilidade de ir, de pertencer a outras culturas, libertando-o e lhe acenando algum futuro, ainda que ilusório.

Ariel, cujos avós maternos chegam à Argentina refugiados do comunismo polonês e cujo pai judeu parte de Buenos Aires para lutar na guerra do Yom Kippur, percorre a pé, mas sempre retornando para o bairro e para a galeria comercial da loja de sua família, uma Buenos Aires sombria, partida, desiludida, pós-crise financeira, na bancarrota em que pequenos comerciantes apenas lutam para sobreviver.

Enquanto a avó materna quer queimar seu passaporte para esquecer o horror e a perseguição sofridos em Varsóvia, Ariel vê nele a possível saída para sua vida pessoal, encurralada pela ausência paterna e pela decadência financeira da capital argentina.

Mas aquele que ser quer europeu ignora tudo o que diga respeito às raízes polonesas. Nos trâmites legais para a conquista do passaporte, mal esconde seu desinteresse por essa história. É cômica a cena em que se esforça para pronunciar o nome do ex-presidente Lech Walesa, do papa João Paulo II (Karol Wojtyla) e do cineasta Roman Polanski.

Ariel não quer ser polonês, embora diga que precise sê-lo urgentemente, bem como não revela maior intimidade com a cultura judaica. Ariel desconhece a própria história: encarcerado na dor da ausência paterna, sente-se preterido; inseguro no amor, abandona a namorada e mantém um caso com uma mulher casada – Rita; indeciso profissionalmente, desenha com desenvoltura, mas não consegue concluir o curso de arquitetura que diz querer fazer na Europa, contando para isso com o seguro-desemprego que a cidadania lhe ofereceria. Refém de sua história de desajustes e desacertos, percorre as ruas do seu bairro na capital argentina, sempre afoito, entrando e saindo da galeria, deslocando sem fixar-se. A cidadania almejada é muito mais refúgio para essa encruzilhada pessoal do que identidade pretendida como forma de aquisição/recuperação de outras pertenças.

Talvez seja menos nos conflitos de Ariel que se situem as tensões do terceiro mundismo argentino tão bem retratado pelo cinema dos anos 2000. Talvez seja muito mais no olhar que ele empresta a essa realidade que cruamente o circunda, sem fetiches europeus, que se perceba a dura constatação da “queda do paraíso”, como afirma em tom bem mais contundente e desesperado o irmão mais velho, Joseph, que abdica do sonho de ser rabino e se torna comerciante: “Ver tudo cair em volta é difícil”.

É no desespero do irmão que se expõe a crise da Argentina, cujo cinema tem, por uma opção estético-político “do dentro”, traduzido algumas tensões periféricas das cidades latino-americanas. Joseph percebe que importar “não dá mais” e deseja investir em outras atividades, como a criação de abelhas, o que rende uma bela e irônica metáfora ao filme com a inadequação da abelha-rainha trazida pelo pai aos ares argentinos. As atitudes de Joseph opõem-se ao espírito blasé de Ariel, que brinca com a tradição judaica, ao afirmar que “… talvez o Talmude explique a desvalorização na Argentina”.

O diretor Daniel Burman vale-se de uma sutileza narrativa: captura pelo olhar de Ariel, por suas andanças, por seu incessante trânsito, toda a “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau, que estilhaça a estabilidade de uma identidade fixa e que rouba de Buenos Aires a pretensão ao paraíso, como também (ou tão bem) revela o filme Conversando com mamãe, de Santiago Carlos Olves, lançado no mesmo ano, e que expõe, no âmbito familiar, uma história também partida tal qual a da Argentina. Com o desemprego, Jaime vê-se obrigado a se reencontrar com seu passado e consigo mesmo. Ao procurar a mãe, uma octogenária, para convencê-la a sair do apartamento em que mora porque precisa vendê-lo, dá-se conta de que, para além da crise financeira que atravessa com o desemprego e a venda dos bens, sua própria situação de cidadão comum (classe média, marido e pai de família pacato) rui. Neste filme, como no de Daniel Burman, é no abraço refeito que se atenua, pela perspectiva “do dentro”, o impacto do fora: da crise político-econômica.

As tensões identitárias das minorias étnico-religiosas, somadas aos muitos trânsitos provocados pela globalização, emprestam à percepção de Michel de Certeau sobre a cidade, como “teatro de uma guerra”, um relato a mais, ácido e cortante.

 (Analice Martins)

Pronto! Falei!

A 30ª Bienal do Livro do Rio terminou no domingo com um público estimado de seiscentos mil visitantes, dois milhões e meio de exemplares vendidos e R$ 58 milhões de faturamento, segundo dados apresentados, na coluna do último sábado da economista Míriam Leitão, no jornal “O Globo”. Para ela, há, portanto, motivos para comemoração.

Custei a entender o que o artigo “A festa do livro” estava fazendo, numa seção de economia, e o que a senhora Leitão tinha a dizer sobre uma Bienal. Ingenuidade minha! Eram comentários baseados, sobretudo, em estatísticas e percentuais da Comissão Organizadora do evento e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Vista pelo prisma comercial, a Bienal é um negócio da China!

Com exceção do depoimento brincalhão de Rui Campos, o dono da rede Travessa, que disse que recorreria a um traficante caso os livros acabassem, discordo frontalmente de quase todas as impressões entusiasmadas de Leitão sobre a observação do movimento do público entre estandes e auditórios. Minhas resistências a esse formato de evento só se avolumaram nesta minha ida ao Riocentro, depois de muitos anos sem pisar lá. Troquei há muito a Bienal pela Primavera dos Livros, atualmente sediada no Museu da República no Catete. Não só pela razão óbvia da distância, mas pelas ambições mais salutares da Primavera.

O negócio do livro é o tom do texto de Leitão. Um negócio que poderia até nos honrar se traduzisse números reais ou aproximados de leitores efetivos. Um consumidor de livros em Bienais é ou será um leitor constante? É apenas um leitor episódico? Que estratégias podem ser empregadas para capturá-lo? Parece-me que quase toda forma de fazer ler valeria a pena se o livro escolhido carregasse informações, reflexões, estórias e versos não descartáveis, com alguma durabilidade em nossas memórias e impacto em nossas vidas.

Uma grande amiga sempre me dizia que lia a coleção “Sabrina” para dormir. Eu achava engraçado este indutor de sono. Livros soníferos, feitos para dormir de imediato. Para a mais valia de sua leitura, “Sabrina” era literatura descartável, que nem coçava, nem entretinha verdadeiramente e que não a deixava em estado de alerta nem de sobressalto.

Na segunda-feira em que fui à Bienal, todas as sacolinhas que vi crianças e adolescentes carregando guardavam coisas estranhíssimas. Quando percebi que naquele dia não haveria nenhuma programação no “Café Literário” e desisti de me colocar como leitora à procura de títulos interessantes com preços convidativos, porque não sei folhear nada em meio a multidões, passei a me comportar como detetive ou cão de caça farejando o que aqueles jovens carregavam em suas sacolinhas. Colei-me neles, segui-os sem que percebessem, atravessei as rodinhas que formavam no chão, cansados dos percursos entre estandes. Quase cometi a indiscrição de pedir que abrissem os pacotes e me mostrassem “seus documentos”. Montei uma blitz mesmo, uma patrulha. Que horror! Mas eu precisava saber o que, via de regra, procura este público. Ah, que desolação quando os via exibindo orgulhosos o último livro da série Assassin’s Creeds, de Oliver Bowden. Mais orgulhosos ainda exibiam nos celulares a foto tirada com o boneco gigante do herói vingador, plantado na porta do estande da livraria. Vi de tudo, até álbum das Chiquititas.

Não se trata do fim do livro, mas com certeza do fim dos tempos. Pronto! Falei! Podem me chamar de alienada, elitista ou qualquer coisa parecida.  É alentador saber que, seja em suporte digital, seja em suporte impresso, o livro sobreviverá. Mas que estórias carregará ou reinventará? Que contribuições poderá trazer à nossa formação e mesmo ao nosso entretenimento?

O Riocentro é enorme, mas poucos eram os espaços para a leitura. Lamento dizer que nada lá convidava à leitura. Ainda que as gerações mais jovens tenham a capacidade de realizar muitas tarefas simultaneamente, para ler, seja lá o que for, algum silêncio é necessário. Uma Bienal é território ruidoso, alvoroçado, nervoso. Atualmente com muitos flashes e filas. Leitão achou graça na “criançada correndo atrás dos ídolos”: Thalita Rebouças, Fábio Porchat. Não deveriam estar correndo atrás dos livros?

A semântica do artigo de Leitão é sofrível: festa, negócio, ídolos. Gostaria de festejar outras coisas: aumento do número de leitores, de bibliotecas públicas, de professores que leem, de pessoas que acreditam que ler pode fazer a diferença. Não são números de vendas que carimbarão nosso passaporte rumo à festa da cidadania.

Vale lembrar que o autor da mais recente tragédia brasileira, o adolescente Marcelo Pesseghini de apenas 13 anos, que matou os pais, a avó e uma tia em São Paulo, suicidando-se depois, era fã do game Assassin’s Creeds. Fim dos sonhos, fim dos tempos.

 (Analice Martins)

Duas ou três coisas que sei sobre elas

Glória Pires, Juliette Binoche, Jeanne Moreau, Barbara Sukowa. Lota de Macedo, Camile Claudel, Frida, Hannah Arendt. “Flores Raras”, “Camile Claudel, 1915”, “Uma dama em Paris”, “Hannah Arendt”. Três desses filmes são cinebiografias romanceadas, um é ficção. Todos altamente recomendáveis. Em todos, são fantásticas as atrizes e suas personagens.

Qualquer manifestação artística deve ser analisada a partir de seu tema e da linguagem que o constrói. Fora desta confluência desejável, não é difícil incorrer em truísmos e lugares comuns. Vou, no entanto, deixar de lado minhas preocupações analíticas. As linhas deste artigo são curtas para tal fôlego. Falo despretensiosamente apenas como mulher que, com a licença poética de Adélia Prado, carrega bandeira e é desdobrável. Acalmem-se! Não farei um discurso feminista com queima de sutiã em espaço público, mas apenas um registro breve da condição feminina retratada nos recentes filmes ainda em cartaz nas salas de cinema cariocas.

Em todas essas produções, as personagens são mulheres maduras. Nenhuma ninfeta. Nenhuma romântica indomável. Todas elas marcadas pelo ardor da paixão às causas e à vida, ainda que tais pulsões lhes tenham trazido o amargo da solidão e da incompreensão. Com exceção do filme “Uma dama em Paris”, protagonizado por Jeanne Moreau, ícone do cinema francês, os demais se baseiam em personalidades históricas, reconhecidas na arquitetura, na escultura e na filosofia. Suas histórias de vida são interpretadas por atrizes que souberam conviver com a passagem do tempo, despudoradas, portanto, em suas rugas iniciais ou definitivas. Atrizes que se libertaram do feitiço do espelho e do mito da eterna juventude física, que souberam vitalizar as marcas do tempo implacável, que, como nos adverte Tomás Antônio Gonzaga, “rouba do corpo as forças e do semblante a graça”.

Nesse sentido, loas a Glória Pires que, como algumas outras poucas atrizes brasileiras, não se rendeu às padronizações estéticas de nossa terra tupiniquim. Já o cinema europeu sempre tirou partido dos cabelos brancos e das rugas de suas antológicas atrizes. É bonito ver que a beleza e a graça não precisam se esgotar cruelmente na maturidade. Por isso, Jeanne Moreau pode interpretar uma personagem octogenária, como ela, e deixar resplandecer o viço que as linhas do tempo podem carregar. Interpreta uma imigrante estoniana em Paris, à frente dos preconceitos de sua época, e para quem a memória física do amor é ainda uma constante, como na linda cena em que apalpa o corpo do ex-amante, seguramente, trinta anos mais novo. Para ser verossímil, a tarefa só poderia ser realizada por uma atriz que reconhece que, na sua idade, não existem mais medos. Uma atriz atenta ao seu tempo, antenada, inclusive, como declarou ao jornal “O Globo”, com as manifestações das ruas brasileiras e capaz de compreender a importância da premiação do filme “A vida de Adele”, no último festival de Cannes, ainda inédito no Brasil.

Em um país moldado no bom-mocismo (até que nem tanto mais assim) de suas telenovelas, é libertador observar uma atriz como Glória Pires não recear interpretar, em “Flores raras”, uma personagem homossexual, Lota de Macedo, e sua história de amor com a poeta norte-amerciana Elizabeth Bishop com quem viveu por mais de uma década. A telenovela e o “jeito Globo de ser” não prostituíram a atriz, não a aprisionaram a tipos, caras, bocas, botox e silicone. É belo ver seu vigor em cena, na pele de uma personagem não menos dionisíaca. É belo ver que seu rosto e seu corpo não se amortalharam em um falso e histérico frescor adolescente.

A Camille Claudel da francesa Juliette Binoche, de “A liberdade é azul”, “O paciente inglês”, “Caché”, é comovente no desamparo da incompreensão a que é abandonada. O filme retrata, de forma concisa e lacônica, o período de sua internação em um sanatório nos arredores de Avignon, na França. As escolhas do diretor Bruno Dumont só conferem realismo à performance de Binoche que contracena com não-atores, internos reais. No cenário pétreo e descolorido desta região francesa, não há necessidade da evocação direta das esculturas de Claudel. Binoche, a atriz, esculpe e modela, com intensidade e rigor, o cruel preço das transgressões para uma mulher do início do século XX. O confinamento foi a paga para o que escapou à razão.

E é pela obstinada tentativa de compreender e pensar que a filósofa judia Hannah Arendt, discípula e ex-amante de Martin Heidegger, enfrenta o desprezo de todas as partes quando sugere que os equívocos das lideranças judaicas podem ter contribuído para a sanha nazista. A atriz alemã Barbara Sukowa se entrega com fervor à personagem por querer também, como declarou em entrevistas, mergulhar na compreensão do ser humano.

É difícil não estabelecer comparações com a estética hollywoodiana na qual imperam o plástico e o descartável. É impossível, diante de filmes assim, com personagens interpretadas por atrizes tão desassombradas e desafiadoras do tempo, não achar louvável que uma arte tão abrangente como o cinema empunhe a bandeira da transgressão, mesmo que pelo viés da dor e da solidão femininas.

Logo, não pude resistir a roubar e adaptar o título deste artigo daquele com que o crítico literário Italo Moriconi apresenta a obra de uma outra mulher “avant-la-garde”: a escritora Ana Cristina Cesar.

 (Analice Martins)