Tá lá o corpo estendido no chão

Está em nós a imagem tenebrosa, escancarada pelas mídias onipresentes, do corpo de Cláudia da Silva Ferreira arrastado por uma viatura da polícia, no domingo, dia 16. Está em nós o semblante indignado da jovem filha de Cacau tendo, tão prematuramente, que escancarar sua dor, sua indignação. Estão em nós os olhares aturdidos de crianças órfãs. Está em nós a voz branda de um marido perplexo. Estão em nós as perguntas que não podem calar: Por que e até quando?

Tá lá o corpo estendido no chão.

Vontade de gritar os versos de Castro Alves, no poema “O Navio Negreiro”: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!/ Ó mar, por que não apagas/ Co’a a esponja de tuas vagas/ De teu manto este borrão?” Vivemos o terrível borrão da iniquidade a céu aberto, seguido da impunidade reinante. A barbárie não é um dado contemporâneo. A barbárie sempre foi o borrão dos processos civilizatórios. A barbárie saiu da história distante, livresca, para atravessar a crônica cotidiana das cidades brasileiras de médio e grande porte. Temos 16 cidades entre as 50 mais violentas do mundo, de acordo com o levantamento elaborado pela ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal AC.

Tá lá o corpo estendido no chão.

Cláudia saía para trabalhar nas madrugadas de todos os dias. Cláudia saiu para comprar pão. Cláudia, como o leiteiro do poema de Drummond, que cumpria sua rotina diária de entregar “leite bom para gente ruim”, foi morta na calada da manhãzinha. Estampido surdo ao amanhecer. “Há pouco leite no país,/ é preciso entregá-lo cedo./ Há muita sede no país,/ é preciso entregá-lo cedo./ Há no país uma legenda,/ que ladrão se mata com tiro.” No poema-crônica de uma cidade em ritmo de crescimento e urbanização, o morador em pânico confunde o inocente leiteiro com “os ladrões que infestam o bairro”, mas exclama: “Meu Deus, matei um inocente./ Bala que mata gatuno/ também serve pra furtar/ a vida de nosso irmão”. Quem há de gritar, em nosso cenário de impunidade, “Meu Deus, matei uma inocente?” O leiteiro perdeu a pressa que tinha, diz o poeta. Cláudia perdeu o pão – a vida – que multiplicava prodigamente entre os seus.

Tá lá o corpo estendido no chão.

O horror nos empobrece, diz o filósofo alemão Walter Benjamin sobre a experiência da guerra. O horror nos emudece. A experiência vazia não gera relatos A pobreza da experiência nos cala. O horror corrói a experiência estética, o horror nos rouba a humanidade, confronta-nos com o precipício de onde seria melhor saltar, como se pergunta Severino, no poema cabralino: Se não seria melhor, uma noite, saltar fora da ponte e da vida, desta vida severina? Esta que se vê. Severino não pulou para fora da vida. Claudia nunca pulou. Arremessaram-na para fora da vida.

Tá lá o corpo estendido no chão.

Cláudia não foi a primeira. Cláudia foi mais uma. Cláudia foi mais outra. Como varrer de nossos mantos este borrão da impunidade, como implora o poeta abolicionista? Como zelar pela vida, varrendo o borrão que nos macula? Há de se protestar? Há de se erguer em barricadas? Há de se defender com armas? Olho por olho, dente por dente? Há de se usar a palavra?

Tá lá o corpo estendido no chão.

Há de se indignar? Há de se blasfemar? Há de se fazer coro com outros versos de Drummond: “Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era Deus/ se sabias que eu era fraco.”

Tá lá o corpo estendido no chão.

(Analice Martins)

Notas para um outro texto

Li outro dia no jornal O Globo, acho, a sugestão de um arquiteto sobre a abertura do escritório de Niemeyer à visitação. Não li a entrevista até o final, mas, mesmo sem entender nada sobre esses protocolos, sobre a museificação de um espaço de criação como um escritório ou ateliê, concordei. Espero não estar falando uma impropriedade.

Os espaços da criação de escritores, pintores, escultores, fotógrafos parecem ao imaginário comum lugares imantados de uma aura especial onde a rotina ordinária de um artista, naquilo que de prosaico e férreo tem, entrelaça-se ao insight da criação, ao momento exato em que do forno artesão sai o pão que entrou massa e trigo e foram cozidos em fogo miraculoso.

Sei que a imagem pode parecer pretensiosa, mas o fato é que esses lugares criam um fetiche para os homens ordinários que supõem que se passe entre paredes uma alquimia a que só alguns têm acesso. Não quero espetacularizar a “cena da criação” além do que ela já é. Mas entender a arqueologia desses espaços parece-me uma tarefa não menos importante para os estudos das condições de produção de artistas.

Esse texto é apenas um esboço, um exercício de reflexão sobre tais contingências que situam concretamente (ou pretendem) a dimensão palpável da criação. Porque, sim, concordem ou não, há sempre algo que escapa ao entendimento na criação, mesmo quando, imagino, deparamo-nos no escritório de um arquiteto com desenhos primeiros, cálculos, pranchetas (ainda são usadas nos dias de hoje?), réguas, esquadros etc. Ou, quando nos deparamos com pincéis, tintas, cavaletes, borrões, e temos a sensação de que entenderemos o que parece fora de nossos alcance e competência, algo como “eu não saberia fazer”.

Visitar, portanto, um espaço como esse é uma forma de adentrar o mistério, de torná-lo terreno, de nos tornarmos também artistas (por que não?), já que, por mais que olhemos e olhemos, não encontraremos senão as pistas do percurso da criação, seus elementos indiciais: o lápis, o pincel, o cinzel. Às vezes, corremos afoitos quando localizamos alguma espécie de diário, pois supomos estar ali o passo a passo da obra, em narrativa ou esquemas. Ainda assim a expectativa será vã: a obra já se ergueu, ganhou corpo e existência próprios. Não foi isso que teria dito Michelangelo ao seu Moisés: “Parla”! Ou teria sido Da Vinci à sua Monalisa?

Talvez pensemos que olhar o momento da criação nos revele o seu segredo e, para tanto, não precisamos recorrer à contemporânea fórmula “work in progress” de galerias e museus famosos, a arte de rua ou nas ruas já nos oferece, há muito, a oportunidade da tentativa de compreensão. Ficamos em suspenso como o caçador prestes a aprisionar o pássaro na gaiola. Mas tal compreensão fugirá sempre, ainda que depositemos toda nossa atenção emotiva e intelectual na “cena do crime”. Na gaiola, o pássaro não tem o mistério do voo. E a obra é o voo, não o pássaro. Por isso, às vezes, pode ser decepcionante encontrar pessoalmente o artista amado.

Se escuros e escondidos, se claros e arejados, se nos porões ou nos sótãos, se nas montanhas ou diante do mar, se em arranha-céus ou em quintais, se suntuosos ou prosaicos, se físicos e fixos ou, hoje, móveis e portáteis, um espaço de criação é sempre alvo de nossos estremecimentos, como, se entrando neles, desvendássemos os segredos da criação.

Na França, estão lá, na condição de patrimônios, o de Cézanne em Aix em Provence, os de Matisse em Nice, o de Renoir em Essoyes, só para citar alguns poucos da minha conveniência. Se pudesse, assistiria à exposição “Picasso: No Atelier”, em cartaz até 11 de maio na Fundação MAPFRE, em Madri. A exposição abrange o trabalho do artista nos vários estúdios em que trabalhou e viveu e reúne cerca de 80 pinturas, 60 desenhos e gravuras, 20 fotografias e mais de uma dezena de paletas que permitem ao visitante verificar como o ateliê se tornou o centro em torno do qual girava toda a criação, o lugar em que se entrelaçava a sua arte e a sua vida. Além disso, há também um documentário, “O mistério Picasso” (1955), do cineasta francês Henri-Georges Cluzot, em que o artista é registrado em pleno gesto de criação, perante a tela no espaço de um ateliê cenográfico, no caso, um estúdio.

Sugiro, até que consiga organizar com mais esmero minhas impressões há muito acalentadas sobre tais espaços, a leitura do livro de Jean Genet, “O ateliê de Giacometti” (2000), da Cosac & Naify, com fotografias de Ernest Scheidegger. Nada mais lindo que ver um homem da palavra descrevendo sua estupefação diante do ato criativo deste impressionante escultor, responsável pelas figuras, em ferro, barro ou bronze, mais agônicas e críveis que jamais vi. Diz Genet: “A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine”.

(Analice Martins)

Quem pode ser chamado de autor?

Talvez essa pergunta devesse ser precedida de uma outra: o que é um autor? Mas, como o filósofo Michel Foucault já a explorou de forma original, em 1969, em uma conferência posteriormente publicada, registro apenas, para entendimento da minha questão, que qualquer processo de autoria é equivalente ao valor simbólico de uma assinatura. Imprime significados distintivos reconhecidos por um grupo social ou mesmo para além de fronteiras culturais.

É, portanto, um processo de atribuição e reconhecimento. A obra atribuída a um autor e reconhecida pela comunidade de leitores como tal possui peculiaridades que, mesmo compartilhadas por uma escola ou uma tendência artística, são capazes de nelas serem diferenciadas por traços personalistas. Como uma figura que se destaca de um fundo amorfo. Uma assinatura é uma forma que ganha relevo sobre uma superfície plana onde se opera a marca de uma subjetividade.

A autoria é, portanto, um processo de criação em que o criador, entendido como artista, desconstrói, seleciona, organiza, mistura, sobrepõe, refaz, devolvendo à sociedade as matérias das quais se apropriou para a confecção de sua obra. A criação deve ser original, singular, mas isso não significa, necessariamente, o “nunca visto”. Como na lei de Lavoisier, “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Se me permitem o trocadilho, nas artes, tudo se cria porque se transforma. A originalidade que assegura a manutenção de uma assinatura é um processo de invenção realizado a partir da observação do mundo, das experiências, da memória e da fabulação. Ninguém cria do nada nem impunemente. Originalidade não é origem. Esta se esfumaça no tempo. Como na metáfora da cebola que se descasca sem jamais se encontrar uma semente. A origem é vazia. Ou se preferirem, “no princípio, era o verbo”.

Essa discussão é longa e polêmica, embora seja um divisor de águas urgente, chacoalhando o cânone, o moderno e o contemporâneo, subvertendo fontes e influências, desierarquizando o tempo cristalizado das nossas convenções. Se a convoco aqui é para um incômodo que me persegue, não sem razão: Por que um diretor de teatro ou de cinema ou um regente de orquestra, por exemplo, são reconhecidos como autores e gozam desse status merecidamente ou não, mas roteiristas e professores não ascendem a tal “glória”, exercendo as mesmíssimas funções?

Pois vejamos alguns exemplos: Diretores de cinema ou de teatro quase nunca são os autores dos textos dramatúrgicos ou literários que colocam de pé no palco depois. São intérpretes sem dúvida, mas trabalham com o trabalho alheio sem o qual talvez pouco fizessem. Precisam de um adaptador, de um roteirista, de um cenógrafo, de um diretor de fotografia, de um figurinista, de um sonoplasta, de um iluminador e, às vezes, até de um encenador ou preparador de atores. Como organizadores de toda esta operação, podem ganhar os céus, o inferno ou o limbo. São, no entanto, reconhecidos como autores. Quem há de dizer que “Hiroshima, mon amour” (1959) não é um filme de Alain Resnais, falecido há algumas semanas, ainda que Marguerite Duras, a autora do texto-roteiro, seja ela mesma uma autora cuja assinatura é reconhecidíssima? Concordo que sem Resnais não haveria o filme. Mas, sem o texto, haveria algum filme? Resnais desfruta de um epíteto caro e também polêmico na crítica cinematográfica. Fez cinema “de autor”, sendo que o autor era ele, o diretor. Woody Allen talvez possa ser visto em outra ponta. É autor do texto e da direção, assume uma dupla função. Até outras, creio. O mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu, por exemplo, diretor de “Amores Brutos”´(2000), “21 gramas” (2003), “Babel” (2006), não vivia sem seu Sancho Pança, o roteirista Guillermo Arriaga, dizem as boas línguas, o grande responsável pelo sucesso dos filmes em questão, até o divórcio profissional.

Sei que a questão é complexa, um vespeiro. Afinal, um filme ou uma peça de teatro são artes atreladas a outras (a literatura, a fotografia, a música). A literatura só depende de um único signo específico, a palavra, capaz de gerar outros tantos, como a imagem e o som. É uma arte polivalente e autônoma, no sentido de que não depende do concurso de outras. Então, nela, a autoria, quando compreende os quesitos já mencionados, é mais individual.

Para mim, que fique claro, diretores de cinema e de teatro, bem como regentes de orquestras, podem ser autores sim, uma vez que selecionam, recortam, montam textos muitas vezes já circulantes na sociedade. Portanto, criam e são originais. Só não entendo por que, professores, que desempenham as mesmas funções, ou seja, leem, escolhem, intertextualizam, organizam a apresentação, agregam outras artes e imprimem a marca de sua subjetividade na condução de um determinado conteúdo e no desenvolvimento de certas habilidades no aluno, não sejam chamados também autores, não gozem deste “de” atribuitivo, de pertencimento. Na minha formação, as aulas sobre Drummond, da professora Marlene de Castro Correia, foram e são o Drummond, de Marlene. As aulas sobre a obra de Graciliano Ramos, da professora Eliana Bueno, foram e são o Graciliano, de Eliana. As aulas sobre Cecília Meireles, de minha querida mãe, Ruth Maria Chaves Martins, foram e são a Cecília, de dona Ruth. A lista seria longa, pois, para mim, esses e outros tantos professores sempre deixaram em suas aulas a marca autoral de sua subjetividade. Não confundam isso com impressionismos, achismos, confidências, testemunhos. Estou falando de seu repertório de leituras, de sua seleção, de suas formas de associação, de seus posicionamentos crítico-analíticos, de seus recortes.

Ora, não são eles também autores? Não deveriam ser reconhecidos com a mesma distinção de diretores e regentes? Mas nem se esforcem para responder. Em um país como o nosso em que a educação é assunto menor, professores só serão autores em nossas memórias afetivas.

(Analice Martins)