Quem pode ser chamado de autor?

Talvez essa pergunta devesse ser precedida de uma outra: o que é um autor? Mas, como o filósofo Michel Foucault já a explorou de forma original, em 1969, em uma conferência posteriormente publicada, registro apenas, para entendimento da minha questão, que qualquer processo de autoria é equivalente ao valor simbólico de uma assinatura. Imprime significados distintivos reconhecidos por um grupo social ou mesmo para além de fronteiras culturais.

É, portanto, um processo de atribuição e reconhecimento. A obra atribuída a um autor e reconhecida pela comunidade de leitores como tal possui peculiaridades que, mesmo compartilhadas por uma escola ou uma tendência artística, são capazes de nelas serem diferenciadas por traços personalistas. Como uma figura que se destaca de um fundo amorfo. Uma assinatura é uma forma que ganha relevo sobre uma superfície plana onde se opera a marca de uma subjetividade.

A autoria é, portanto, um processo de criação em que o criador, entendido como artista, desconstrói, seleciona, organiza, mistura, sobrepõe, refaz, devolvendo à sociedade as matérias das quais se apropriou para a confecção de sua obra. A criação deve ser original, singular, mas isso não significa, necessariamente, o “nunca visto”. Como na lei de Lavoisier, “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Se me permitem o trocadilho, nas artes, tudo se cria porque se transforma. A originalidade que assegura a manutenção de uma assinatura é um processo de invenção realizado a partir da observação do mundo, das experiências, da memória e da fabulação. Ninguém cria do nada nem impunemente. Originalidade não é origem. Esta se esfumaça no tempo. Como na metáfora da cebola que se descasca sem jamais se encontrar uma semente. A origem é vazia. Ou se preferirem, “no princípio, era o verbo”.

Essa discussão é longa e polêmica, embora seja um divisor de águas urgente, chacoalhando o cânone, o moderno e o contemporâneo, subvertendo fontes e influências, desierarquizando o tempo cristalizado das nossas convenções. Se a convoco aqui é para um incômodo que me persegue, não sem razão: Por que um diretor de teatro ou de cinema ou um regente de orquestra, por exemplo, são reconhecidos como autores e gozam desse status merecidamente ou não, mas roteiristas e professores não ascendem a tal “glória”, exercendo as mesmíssimas funções?

Pois vejamos alguns exemplos: Diretores de cinema ou de teatro quase nunca são os autores dos textos dramatúrgicos ou literários que colocam de pé no palco depois. São intérpretes sem dúvida, mas trabalham com o trabalho alheio sem o qual talvez pouco fizessem. Precisam de um adaptador, de um roteirista, de um cenógrafo, de um diretor de fotografia, de um figurinista, de um sonoplasta, de um iluminador e, às vezes, até de um encenador ou preparador de atores. Como organizadores de toda esta operação, podem ganhar os céus, o inferno ou o limbo. São, no entanto, reconhecidos como autores. Quem há de dizer que “Hiroshima, mon amour” (1959) não é um filme de Alain Resnais, falecido há algumas semanas, ainda que Marguerite Duras, a autora do texto-roteiro, seja ela mesma uma autora cuja assinatura é reconhecidíssima? Concordo que sem Resnais não haveria o filme. Mas, sem o texto, haveria algum filme? Resnais desfruta de um epíteto caro e também polêmico na crítica cinematográfica. Fez cinema “de autor”, sendo que o autor era ele, o diretor. Woody Allen talvez possa ser visto em outra ponta. É autor do texto e da direção, assume uma dupla função. Até outras, creio. O mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu, por exemplo, diretor de “Amores Brutos”´(2000), “21 gramas” (2003), “Babel” (2006), não vivia sem seu Sancho Pança, o roteirista Guillermo Arriaga, dizem as boas línguas, o grande responsável pelo sucesso dos filmes em questão, até o divórcio profissional.

Sei que a questão é complexa, um vespeiro. Afinal, um filme ou uma peça de teatro são artes atreladas a outras (a literatura, a fotografia, a música). A literatura só depende de um único signo específico, a palavra, capaz de gerar outros tantos, como a imagem e o som. É uma arte polivalente e autônoma, no sentido de que não depende do concurso de outras. Então, nela, a autoria, quando compreende os quesitos já mencionados, é mais individual.

Para mim, que fique claro, diretores de cinema e de teatro, bem como regentes de orquestras, podem ser autores sim, uma vez que selecionam, recortam, montam textos muitas vezes já circulantes na sociedade. Portanto, criam e são originais. Só não entendo por que, professores, que desempenham as mesmas funções, ou seja, leem, escolhem, intertextualizam, organizam a apresentação, agregam outras artes e imprimem a marca de sua subjetividade na condução de um determinado conteúdo e no desenvolvimento de certas habilidades no aluno, não sejam chamados também autores, não gozem deste “de” atribuitivo, de pertencimento. Na minha formação, as aulas sobre Drummond, da professora Marlene de Castro Correia, foram e são o Drummond, de Marlene. As aulas sobre a obra de Graciliano Ramos, da professora Eliana Bueno, foram e são o Graciliano, de Eliana. As aulas sobre Cecília Meireles, de minha querida mãe, Ruth Maria Chaves Martins, foram e são a Cecília, de dona Ruth. A lista seria longa, pois, para mim, esses e outros tantos professores sempre deixaram em suas aulas a marca autoral de sua subjetividade. Não confundam isso com impressionismos, achismos, confidências, testemunhos. Estou falando de seu repertório de leituras, de sua seleção, de suas formas de associação, de seus posicionamentos crítico-analíticos, de seus recortes.

Ora, não são eles também autores? Não deveriam ser reconhecidos com a mesma distinção de diretores e regentes? Mas nem se esforcem para responder. Em um país como o nosso em que a educação é assunto menor, professores só serão autores em nossas memórias afetivas.

(Analice Martins)

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