Notas para um outro texto

Li outro dia no jornal O Globo, acho, a sugestão de um arquiteto sobre a abertura do escritório de Niemeyer à visitação. Não li a entrevista até o final, mas, mesmo sem entender nada sobre esses protocolos, sobre a museificação de um espaço de criação como um escritório ou ateliê, concordei. Espero não estar falando uma impropriedade.

Os espaços da criação de escritores, pintores, escultores, fotógrafos parecem ao imaginário comum lugares imantados de uma aura especial onde a rotina ordinária de um artista, naquilo que de prosaico e férreo tem, entrelaça-se ao insight da criação, ao momento exato em que do forno artesão sai o pão que entrou massa e trigo e foram cozidos em fogo miraculoso.

Sei que a imagem pode parecer pretensiosa, mas o fato é que esses lugares criam um fetiche para os homens ordinários que supõem que se passe entre paredes uma alquimia a que só alguns têm acesso. Não quero espetacularizar a “cena da criação” além do que ela já é. Mas entender a arqueologia desses espaços parece-me uma tarefa não menos importante para os estudos das condições de produção de artistas.

Esse texto é apenas um esboço, um exercício de reflexão sobre tais contingências que situam concretamente (ou pretendem) a dimensão palpável da criação. Porque, sim, concordem ou não, há sempre algo que escapa ao entendimento na criação, mesmo quando, imagino, deparamo-nos no escritório de um arquiteto com desenhos primeiros, cálculos, pranchetas (ainda são usadas nos dias de hoje?), réguas, esquadros etc. Ou, quando nos deparamos com pincéis, tintas, cavaletes, borrões, e temos a sensação de que entenderemos o que parece fora de nossos alcance e competência, algo como “eu não saberia fazer”.

Visitar, portanto, um espaço como esse é uma forma de adentrar o mistério, de torná-lo terreno, de nos tornarmos também artistas (por que não?), já que, por mais que olhemos e olhemos, não encontraremos senão as pistas do percurso da criação, seus elementos indiciais: o lápis, o pincel, o cinzel. Às vezes, corremos afoitos quando localizamos alguma espécie de diário, pois supomos estar ali o passo a passo da obra, em narrativa ou esquemas. Ainda assim a expectativa será vã: a obra já se ergueu, ganhou corpo e existência próprios. Não foi isso que teria dito Michelangelo ao seu Moisés: “Parla”! Ou teria sido Da Vinci à sua Monalisa?

Talvez pensemos que olhar o momento da criação nos revele o seu segredo e, para tanto, não precisamos recorrer à contemporânea fórmula “work in progress” de galerias e museus famosos, a arte de rua ou nas ruas já nos oferece, há muito, a oportunidade da tentativa de compreensão. Ficamos em suspenso como o caçador prestes a aprisionar o pássaro na gaiola. Mas tal compreensão fugirá sempre, ainda que depositemos toda nossa atenção emotiva e intelectual na “cena do crime”. Na gaiola, o pássaro não tem o mistério do voo. E a obra é o voo, não o pássaro. Por isso, às vezes, pode ser decepcionante encontrar pessoalmente o artista amado.

Se escuros e escondidos, se claros e arejados, se nos porões ou nos sótãos, se nas montanhas ou diante do mar, se em arranha-céus ou em quintais, se suntuosos ou prosaicos, se físicos e fixos ou, hoje, móveis e portáteis, um espaço de criação é sempre alvo de nossos estremecimentos, como, se entrando neles, desvendássemos os segredos da criação.

Na França, estão lá, na condição de patrimônios, o de Cézanne em Aix em Provence, os de Matisse em Nice, o de Renoir em Essoyes, só para citar alguns poucos da minha conveniência. Se pudesse, assistiria à exposição “Picasso: No Atelier”, em cartaz até 11 de maio na Fundação MAPFRE, em Madri. A exposição abrange o trabalho do artista nos vários estúdios em que trabalhou e viveu e reúne cerca de 80 pinturas, 60 desenhos e gravuras, 20 fotografias e mais de uma dezena de paletas que permitem ao visitante verificar como o ateliê se tornou o centro em torno do qual girava toda a criação, o lugar em que se entrelaçava a sua arte e a sua vida. Além disso, há também um documentário, “O mistério Picasso” (1955), do cineasta francês Henri-Georges Cluzot, em que o artista é registrado em pleno gesto de criação, perante a tela no espaço de um ateliê cenográfico, no caso, um estúdio.

Sugiro, até que consiga organizar com mais esmero minhas impressões há muito acalentadas sobre tais espaços, a leitura do livro de Jean Genet, “O ateliê de Giacometti” (2000), da Cosac & Naify, com fotografias de Ernest Scheidegger. Nada mais lindo que ver um homem da palavra descrevendo sua estupefação diante do ato criativo deste impressionante escultor, responsável pelas figuras, em ferro, barro ou bronze, mais agônicas e críveis que jamais vi. Diz Genet: “A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine”.

(Analice Martins)

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