A escola e o cinema nacional

Desde o dia 27 de junho é obrigatória, nas escolas, a exibição, por ao menos 2 horas mensais, de filmes e audiovisuais de produção nacional. A lei 13.006, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, altera o artigo 26 da lei 9.394, que dispõe sobre as diretrizes e bases curriculares da Educação Básica. A lei acolheu o projeto de autoria do senador Cristovam Buarque, que diz ser o cinema a arte mais fácil de ser levada à escola, sendo este o espaço propício à formação de uma massa crítica de cinéfilos, capazes de retroalimentar a indústria cinematográfica brasileira.

A lei acrescenta um parágrafo ao artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases, tornando a exibição de filmes de produção nacional componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola. Este mesmo artigo dispõe sobre o ensino de artes, observando matrizes regionais, o ensino da música como componente obrigatório, mas não exclusivo, e o ensino da história do Brasil a partir de nossa formação étnica e cultural híbrida, ou seja, apoiada também nas matrizes indígena e africana.

Toda lei obriga ao cumprimento de princípios e concepções. Os parágrafos mencionados do artigo 26 da lei 9.394 são bem intencionados, sem dúvida. Toda lei deveria também assegurar seu cumprimento, mas isso depende de políticas públicas muito mais do que de canetadas. E talvez seja aí que as melhores intenções vão-se pelos ralos. Ou seja, alterar, sob a forma de lei, propostas curriculares para as escolas do Ensino Básico deveria ser um movimento casado com as propostas de formação de professores no Brasil. Os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares das licenciaturas de Artes, Letras e História em especial deveriam igualmente ser revistos, talvez, antes mesmo da sanção de leis que interfiram na Educação Básica.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1999 são também orientações que pressupõem uma formação docente muito mais oxigenada do que a que os cursos de licenciatura do país vêm oferecendo, com poucas exceções. A necessidade de integrar à sala de aula propostas interdisciplinares é desafio ainda maior do que integrar o uso das novas tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem. Isso porque é de forma compartimentada, estanque, emparedada e autocentrada que as licenciaturas do país continuam operando.

Em artigo intitulado “Literatura e Cultura: lugares desmarcados e ensino em crise”, a professora e pesquisadora Eliana Yunes já advertia para a precária realidade da formação do magistério no Brasil: “Além de não-leitores, com pequeno repertório literário de baixa atualidade, os professores premidos entre os parcos salários e a desvalorização social que os lança na roda-viva das inumeráveis aulas sem pesquisa, não acompanham os movimentos da cultura a seu redor e, por isso, pouco podem mobilizar das produções mais próximas ao alunado, em favor de uma inserção mais consciente destas linguagens e seus usos, o que criaria outro tipo de participação menos retórica e alienada, quando não absolutamente includente”. Não é com R$50 de vale-cultura que se resolverá questão tão estruturalmente delicada. Ou se corrige o problema na base ou de pouco valerão remendos e medidas paliativas.

A nova lei sancionada pela presidente diz apenas da obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, já a ementa do projeto de Cristovam Buarque fala também em análise dessas produções audiovisuais, o que é proposta bem mais ambiciosa e exigente, pois requer profissionais habilitados para tratarem não apenas questões temáticas e conteudísticas (tarefa comum em debates), mas questões específicas da linguagem cinematográfica, de sua produção enquanto imagem em movimento, de suas opções estéticas e de funcionamento, além de outras dialógicas e interdisciplinares, que possam ajudar a construir uma “massa crítica”, como deseja o autor do projeto e todos nós.

Mas faço coro novamente com a professora Eliana Yunes quando indaga: “Como tratar filmes, diretores, estilos, linguagens se a familiaridade e o aparato reflexivo (dos docentes) são rarefeitos? Sabe-se lá pensar a relação de Nelson Pereira dos Santos com Vidas secas, de Graciliano Ramos, já que ‘é mais fácil e rápido ver o filme do que ler’? Mas uma coisa não é a outra, e tratar o cinema em classe com os mesmos impasses do trato da literatura não faz avançar o debate. De que modo se vê/lê filmes autorais como Central do Brasil e ou O baile perfumado, para não falar da obra de Fernando Carvalho sobre a narrativa de Raduan Nassar, pensando em quem não leu o livro, Lavoura arcaica?”

Pelo que entendi, a lei não diz a quem caberá a condução dessas exibições. À escola, sem dúvida. Mas quais serão os agentes envolvidos? Os professores? Especialistas convidados? Para que a intenção não se perca na poeira e se torne mais um imbróglio para as escolas, deve-se procurar integrá-la à formação docente capacitada. Se de todo isso não acontecer, que, pelo menos, a iniciativa figure como um grito contra os enlatados americanos.

(Analice Martins)

Soterrados pela informação

A informação nos liberta. Sua sonegação nos coloca antolhos. Sociedades democráticas e de livre expressão lutam por ela. Sociedades cerceadas pelo estado e pelo militarismo padecem de sua ausência.

No século XXI, ela continua sendo um valioso capital, mas, por andar na velocidade da luz e na palma de nossas mãos, perdeu sua primazia entre nossas urgências e, sobretudo, espetacularizou-se. Como quase todo o resto, é consumida entre fofocas, coca-cola e pipoca. Perdeu a gravidade e a circunspecção. É muitas vezes acompanhada com a distração do entretenimento. Ainda que trágicas, são mais imagem do que realidade.

Tais afirmações podem parecer estranhas, espantando entusiastas da tecnologia “up to date” e jornalistas e emissoras de plantão, mais ávidos pelo furo do que pelo fato em si. Poucas, insisto, são as informações – entre as que nos chegam em cascata – capazes de congelar nossa hiperatividade de sentidos e nossas múltiplas demandas. Estamos sempre zapeando canais e redes, surfando sobre elas.

Replicá-las, compartilhá-las ou curti-las são mais atitudes instintivas do que reflexivas. Quase sempre não merecem uma linha sequer de nossos comentários, muito menos de nosso empenho crítico. Transformam-se, em nossas redes e perfis, apenas em números de postagens, não têm volume algum, vão-se sucedendo entre caras e bocas, não obedecem a nenhuma seleção ou hierarquia de critérios. Tanto faz a Faixa de Gaza ou o Ebola ou Anitta ou Fábio Porchat. Tudo passa pelos sites de notícias e pelas redes sociais. As informações acabam por ter uma dimensão horizontalizada e sintagmática. Não apresentam cortes, seções, enquadramentos. Falta-lhes um corte brechtiano, algo que as tire dessa platitude asséptica e amorfa, onde são apenas postagens e não matérias. Não nos paralisam os sentidos, não nos tiram da cadeira, não nos colocam de pé, não nos fazem gritar. Minto: fazem sim. Quantas vezes já interrompi o que estava fazendo para acolher um grito de urgência que me apontava na tela um macaco comendo banana. E daí?

A sociedade da informação em rede, como dizem os especialistas, é revolucionária, obra milagres, remove montanhas, encurta distâncias etc etc etc. É um fenômeno irreversível e contagiante. Esconder-se dela deve ser sintoma de alguma doença dos séculos passados para a qual não se encontrou ainda a cura e que deveria estar em estado de remissão. Temos, ao contrário, que estar cada vez mais imersos nela, sob pena de nos tornarmos alienígenas inclassificáveis.

Sei lá. Como alienígena que sou, usando essa primeira pessoal do plural e cinicamente me incluindo nesse diagnóstico, não sei se temos (agora o nós é de verdade!) conseguido de fato fazer aproveitar as benesses informacionais de que dispomos nos dias atuais. Pois vejamos:

No plano da pesquisa, 20 anos representaram a entrada em um universo digital e interligado de proporções jamais pensadas pelos “imigrantes digitais”, como eu. Se quisesse ter acesso a uma dissertação ou tese, tinha que me deslocar até as bibliotecas físicas onde se encontrassem. Isso era uma verdadeira travessia entre geografias. Havia também o correio e a boa vontade do bibliotecário, além dos custos disso. Até a arquivos microfilmados cheguei a recorrer. Para um estudante do final dos anos 90 no Brasil, isso é uma cena de ficção científica. Sequer dimensionam tais montanhas e fronteiras. Tudo está ao alcance dos olhos e dos dedos. A angústia não dura nem alguns minutos. Tudo está lá, ou melhor, aqui: notícias, entrevistas, ensaios, artigos, teses, livros. O que não está pode vir a estar sem muito esforço.

Esse encurtamento de distâncias me parece provocar uma reação adversa especialmente em jovens estudantes ou naqueles que, adultos, saltaram do analfabetismo para a cultura digital sem processar os abismos que os separam.

Não discuto a revolução dessa alteração paradigmática de aquisição de um capital informacional. Sou dele usuária e beneficiária. Mas me preocupo com o alarido estéril de que o acesso à informação seja acesso ao conhecimento. Enquanto opiniões, livros, teorias e resultados de pesquisas forem consumidos sem reflexão, sem debate, sem criticidade, não serão, para quem os lê, conhecimento propriamente. Serão ilustrações, tabelas, citações justapostas ou copiadas e coladas sem nenhuma construção cognoscente e, portanto, autoral. Localizar dados e textos é etapa obrigatória de estudos e pesquisas, mas o tropeço ingênuo é crer que a satisfação e o encantamento provocados por tais “achados” conduzam ao conhecimento.

Para que sejamos também uma sociedade do conhecimento, precisamos ensinar a ler, decifrar signos e símbolos, abstrair, selecionar, correlacionar, contextualizar e hierarquizar sim. Hierarquizar informações, saber quem produziu o que, quando, por que e em relação a que significa conhecer genealogias do pensamento, filiações e originalidade. Fora disso, tudo é réplica, blá-blá-blá, vozerio estéril.

Penso sempre que cabe prioritariamente à escola e a iniciativas educacionais promover o desejado pulo do gato. Sem tal discernimento crítico estaremos sempre soterrados pelas informações. Asfixiados e imobilizados.

(Analice Martins)

Funções da leitura

É consenso entre vários setores da sociedade a absoluta necessidade da leitura para a formação psíquica e intelectual de sujeitos pensantes. Difícil é remar contra a maré em um país como o nosso. Embora sejam alardeados índices de aumento do universo de leitores, sobretudo se consideramos a leitura “deslizante” proporcionada por novas mídias e suportes, nossos resultados de ensino e aprendizagem, em nível mundial, são desastrosos. Não saímos sequer do fosso do analfabetismo funcional.

Índices não são capazes de atestar, com segurança, se um leitor consegue decodificar o sistema simbólico da língua escrita e dar-lhe significações, muito menos se consegue ampliar  tal sistema, sendo capaz de “ler o mundo”, ambição máxima da atividade da leitura. Um sujeito- leitor não pode ser meramente um decodificador de signos, deve ser sobretudo alguém apto a associá-los, derivá-los, ampliá-los, verticalizá-los paradigmaticamente.

Em entrevista recente ao jornal “O Globo”, Pedro Saffi, professor do Departamento de Finanças da “Cambridge Judge Bussiness School” ressalvou que, apesar de o Brasil ter subido de posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), desde o Plano Real, a educação foi um indicador que permaneceu estagnado, constituindo uma das mazelas do crescimento econômico responsável pela perpetuação da concentração de renda no país: “É essencial a melhoria da qualidade na educação para que o Brasil possa competir com outras nações. Nossa mão de obra é, na média, pessimamente qualificada em todos os níveis e, infelizmente, sem grandes perspectivas de melhora. A expansão no acesso à educação não foi acompanhada por qualquer melhora significativa de qualidade”.

O diagnóstico de Saffi põe o dedo em nossa ferida e faz cessar um cenário promissor a médio prazo. Sua constatação de nosso quadro econômico e consequentemente de Desenvolvimento Humano aponta a estagnação na educação como nosso calcanhar de Aquiles. Para mim, tal estagnação tem um nome específico: ineficiência na leitura. Eu poderia citar aqui muitas matérias, artigos e entrevistas que apontam esse quadro desolador e desigual como a razão de nossa histórica defasagem. Nem é preciso recorrer a especialistas na área de ensino de língua portuguesa e literatura para reconhecer que a incapacidade de ler com eficiência impede qualquer compreensão de conhecimentos matemáticos, físicos e químicos e, consequentemente, a resolução de suas questões.

Existem, é claro, experiências exitosas, mas isoladas, que não constituem uma política pública nem um esforço governamental que passaria inicialmente pela formação e valorização do professor, sem o qual o acesso ao universo da leitura ficaria a reboque da sorte e de casuísmos. Ler com competência e ser capaz de interpretar a realidade para, diante dela, ter uma postura reflexiva e de interferência não pode ser uma benção, um dom, um privilégio. Tem que ser (e é) um direito, que nos tem sido constantemente negado.

É lindo ver eventos como as Festas Literárias e as Bienais, mas nelas o acesso ao universo da leitura já está consolidado. Trata-se apenas de um aprofundamento de laços e afinidades. O osso duro de roer está na sala de aula. Dos problemas estruturais aos mais filosóficos, continuamos a dar cabeçadas às escuras.

A professora e crítica literária Nelly Novaes Coelho enumera as seguintes funções para a leitura, em especial do texto literário: lúdica, evasionista, catártica, cognitiva, pragmática e sinfrônica ou sintonizadora. Deveríamos, ainda antes de alfabetizados, ter o direito assegurado pela escola de nos beneficiarmos de todas essas funções, em ordem ou fora dela, separada ou simultaneamente. Nenhuma delas deveria se apartar de nós na vida adulta.

Uma vez introduzido competentemente no universo sígnico da leitura, o sujeito-leitor (criança ou adulto) poderá entreter-se, divertir-se; escapar da realidade contingente e projetar-se em uma realidade paralela, sonhar, viajar; dar vazão aos seus sentimentos, purgá-los, purificar-se deles, experimentar sensações novas, nunca vivenciadas; aprender, adquirir informações, conhecimentos; transformar a si mesmo ou a realidade a partir deles, mas sobretudo poder reconhecer nos textos a capacidade de perpetuação da vida, da memória, de identificação de sentimentos para além de fronteiras geográficas, linguístico-temporais, culturais e etárias.

Enfim, entender que, pela leitura, a realidade se descortina e se reinventa e que ter esse direito negado por ineficientes políticas públicas de formação do professor ou de escolarização de alunos nos fará perder o bonde da história.

(Analice Martins)