Sereia de um outro mar

Texto lido por mim em homenagem a Ruth Maria Chaves Martins, minha mãe, na Academia Campista de Letras, em 26/08/2013.

Faço coro com a bela imagem que minha irmã, Luciana, recolheu para descrever nossa mãe.  No desassossego da saudade primeira, em texto feito dias depois de sua partida, disse então: “Lembro-me de que, aos sete anos, em uma viagem a Belém do Pará, sua terra natal, presenciei extasiada, no mercado Ver-o-Peso, um rio que só o norte possui e cujas margens não se veem. Notei assustada que minha mãe chorava. Viver e conviver com ela era nunca enxergar a outra margem. Quem já teve a oportunidade de ir ao Norte, lembrará que a essência de sua alma só poderia ser paraense: imensa floresta, rios volumosos sem margens à vista, imensidão… Viver e conviver com ela sempre foi um longo e profundo mergulho”.

Nada em nossa mãe foi pequeno, tudo foi vasto e volumoso: seu talento literário, suas leituras, sua memória, sua inteligência, sua competência profissional, sua dedicação ao magistério. Maiores ainda, sei que hão de concordar, foram sua generosidade cristã, seu espírito maternal, sua simplicidade e sua modéstia que, talvez, nem nos permitisse, em vida, homenagem deste porte. Se a fazemos, agora, é porque queremos aplacar nossas saudades e louvar ainda outra vez suas virtudes. Nossa mãe foi uma bem-aventurada, porque pura de coração. E estes verão a face de Deus.

Grandes foram suas perdas, maiores, entretanto, suas atitudes de superação e de abnegação. Como mãe, sempre foi o abrigo acolhedor de nossos medos, inseguranças e tropeços e o trampolim de nossos esforços.

Nenhuma palavra dirá o bastante de sua vida, nenhum depoimento reunirá as histórias e as confidências de cada um, nenhuma louvação ou elegia será parelha ao que nos legou, a nós seus filhos, amigos e aprendizes. Ruth Maria Chaves Martins fez da vida poesia em seu sentido stricto, do grego “poiésis”: criação, agir criativo e essencial. Logo, foi poeta em tempo integral. Permanecerá nos corações e nas memórias de todos que aqui estão e de muitos outros, porque seu “agir criativo”, em qualquer dimensão da vida, foi essencial. Não será por adjetivos que a relembraremos, mas pelo que, na vida, é substantivo, como sugere a etimologia do nome Ruth(do hebraico): companheirismo, lealdade, beleza plena.

Melhor então que suas próprias palavras digam do que foi, como no poema “À mesa”, de inspiração cabralina, em que podemos ler o compromisso com a vida:

O pão é fresco e triste

e me interpela a voz de quem

ao lado não ocupa tua ausência.

 

O vinho é forte e triste,

justo cristal no copo

como a memória em mim.

 

Alto e triste é o relógio.

A morte diz nas horas:

– tempo que vai, não vem.

 

Talhares se descruzam

como destinos.

 

O guardanapo limpa

o silêncio dos lábios.

 

Mas é-me um compromisso

com a vida,

no prato raso como a esperança,

esta intacta maçã

queimando-se em doçura.

A propósito dos versos de Roda, Pião!, diz Marly de Oliveira, poeta e amiga de toda uma vida, na orelha do livro: “não nos engane, porém, sua aparente facilidade, que fruto não é de uma despreocupação técnica, mas de uma luta com a palavra, de onde só saem vitoriosos os verdadeiros poetas.” Como já bem reconhecera Bandeira e outros tantos poetas e escritores com os quais conviveu: Cecília Meireles, Walmir Ayala, Mauro Mota, Augusto Frederico Schimidt, Afonso Félix de Souza, Carlos Drummond de Andrade.

Entre seus autores preferidos, estava Guimarães Rosa, que lamentou não ter conhecido pessoalmente, mas que a lera e a distinguira como poeta, conforme me segredou encabuladamente. Guimarães Rosa a elogiara, segundo o jornalista e crítico literário maranhense Franklin de Oliveira, amigo comum e que publicara no extinto jornal Correio da Manhã seu poema “Sereia”, este que leio agora como homenagem ao seu decantado talento e como canto de despedida:

Marujos das altas noites,

já não vos posso encantar!

Sou, entre o eterno e o minuto,

Sereia de um outro mar.

 

Que triste em meus olhos bruxos!

Que mistério em meu penar!

 Acabrunhada sereia,

 encantei-me em meu cantar.

 

 Teci no amor meus cabelos

 para melhor quebrantar,

 e agora os alongo longos

 a fim de me amortalhar.

 

O alto céu crespo de estrelas

 precipito em meu olhar

 e me achego à própria sombra

 ante mim, ninguém e o mar.

 

 Marujos, não vos encanto

 se, reclinada ao luar,

 meus lívidos lábios tremem

 como se fossem chorar.

  

Que morro ante o vosso encanto

e apresso-me em descansar

nos vagos corais do sono,

no fundo de um outro mar.

Mãe querida, receba neste “outro mar” para onde levou seus cantos e encantos”, a saudade e a gratidão dos que ficaram sem o alento de sua presença.

(Analice Martins)

O texto nosso de cada dia

Quando o cronista engasga na matéria a ser escolhida, quando nada vem em seu socorro, quando fatos, notícias, ideias fixas, temas prediletos não lhe suscitam uma percepção pessoal, um ponto de vista instigante, é para o exercício da própria escrita que se volta, é em seus livros de cabeceira ou em seus novos companheiros que encontra pouso e de onde tudo recomeça como barro maleável, dócil ao desenho que as mãos lhe darão.

A poesia de Armando Freitas Filho não me é uma leitura nova, feita pela primeira vez, embora toda leitura, quando intensa, convide sempre a outras vezes, porque não se lê para esgotar assunto ou forma, lê-se para reinventá-los. Por isso, o poeta acerta quando confessa, em “Há meio século”, poema do recém-lançado Dever (2013): “Componho para além do fôlego/da folha, para fora do papel./Não é como escrever firmando/ no tampo da mesa, na página/do livro, no tempo da areia/sujeita ao mar, sequer. Componho/para frente, onde o leitor se forma/no espaço e lê, e leva o que possuiu”.

Armando Freitas Filho está lá no experimentalismo e nas inquietações da Poesia Marginal dos anos 70, mas também está além, nesses 50 anos de produção literária, entregue à “luta vã com as palavras”, como já dissera Drummond, referência maior em sua trajetória e a quem dedica, neste Dever, o belo poema “O nome de um pai”, para quem “a morte incorrigível/já tinha chegado, há tempo.”

Recorrendo a Borges e a Mallarmé, revisita o tema sempre necessário das teorias poéticas da composição e da leitura. Colhe, em “A biblioteca de Babel”, o conto borgeano que constitui um lugar teórico de reflexão sobre a escrita e a leitura, o mote para dizer que “Cada livro é um capítulo/vindo de dentro de outro livro/ e assim sucessivamente”, para concluir, a contrapelo, “não tenho o gênio/o engenho para dizer/ que tudo vai acabar num livro.”/ Só sei que tudo não acabará/ num livro, que tudo/ vai acabar comigo”.

Neste poema “Livros”, o poeta afirma que só Borges leu todos os livros, sabendo dos que precisava, porque pressionado pela cegueira, mas que ele, “poeta cego desde sempre” não tinha tal urgência. Portanto, os livros “transbordam pelas estantes” sem que ele consiga arrumá-los, pois “se os arrumasse/ os arrumaria como na morte”.

A biblioteca do poeta, então, tem que ser duvidosa para que lhe permita “ler, reler, interromper, não ler, esquecer, perder.” Neste poema intitulado “Biblioteca duvidosa”, agarrei minha lavra desta semana, não como desculpa para a urgência e a preguiça de considerar arrumar meu próprio escritório, mas como defesa de que uma ordem catalográfica em nada talvez ajude o gênio criador. Como indaga o poeta, não é melhor tê-los “estourados/pelo tempo da traça e da leitura/pelas estantes que os regurgitam/ou que os engolem, crus, sem abrir” a “arrumá-los metro a metro, bibliotecária-/mente, com todas as lombadas certas/por assunto, sabor e peripécia/desfazendo as pilhas de autores sortidos/ o retrato do que vai por dentro/do escritório e do escritor/não seria vazio, de mentira, findo?”

Não se iludam apressados os que concluírem que esta imagem corresponda à falta de método. Ao contrário, ela é o próprio método que permite o “lance de dados” mallarmaico. Nesta aparente desordem, esgueiram-se “os entrelivros invisíveis”. Assim como cada livro é um capítulo vindo de outro livro, uma biblioteca de verdade deve nos abastecer a sanha, deve guardar invisíveis nossas associações livres ou arbitrárias, nossos desejos e descobertas para que, não tendo tempo para ler todos os seus livros, vivamos deste incômodo.

Em “Edições de Mallarmé”, Armando dá a senha para aqueles que não estão sempre ao alcance da mão, mas que se alojam na imaginação: “Entre os livros há os entrelivros/invisíveis quando estão perfilados/ que quase se esquecem de ser./ Magros, mais perto da imaginação/do que da mão, ocupam na estante/o lugar nenhum, no entanto são deles/os primeiros dados, ainda trêmulos/no meio do lançamento e da aterrissagem”.

Por isso, ainda que sem a “visita instigante da inspiração”, é melhor se entregar ao dever de escrever, porque, como reconhece o poeta, escrita é também uma “série de exercícios de repetição”. Em poema de 2007, Armando Freitas Filho justifica seus cinquenta anos de luta diária com as palavras: “Evito não escrever, mesmo se não há/ convite ou visita instigante da inspiração./Escrita é treino, ginástica, rascunhografia/momentos vários de dias em um dia único, indiviso./Série de exercícios de repetição, a fim de alcançar/não menos, mas mais segundos para a mão./O tempo todo, sofrescrevo, só, preso/na oração torturada pelo predicado do sujeito/intransitivo, em transe hermético, trancado/no escritório automático do quarto, na cabeça/ ou ao ar livre, sem suporte, cheio de gralhas./ No final sem fim, subscrevo, não subverto – ecoo.”

(Analice Martins)

Desconfianças da tecnologia

Pode até parecer ranzinza a posição que vou defender aqui, porém quanto mais me aproximo da tecnologia direcionada à educação, menos a acho indispensável para a construção reflexiva do conhecimento. Talvez, por ser uma imigrante digital e pouco dada a grandes mudanças, para quase tudo que é alardeado como avanço, tenho alguma ressalva. Este artigo é uma lista incompleta e falha de exemplos, destinada, talvez, a virar piada entre especialistas.

Que fique claro também que falo de um país com economia pujante, índices melhorados de crescimento, mas ainda com sérias desigualdades sociais e educacionais. Em países como o nosso, a tecnologia pode até mesmo aumentar as distâncias e tornar intransponíveis determinadas fronteiras. Ou seja, o tiro pode sair pela culatra.

Sou do tempo em que os computadores não eram domésticos, muito menos portáteis, um disquete era uma bolacha de plástico de 8 polegadas, as impressoras eram matriciais e tinham rolos de folhas contínuas, e-mails não existiam, não havia educação à distância, nem celulares, e todo este mundo tecnológico que nos parece imprescindível hoje era uma miragem, um filme de ficção científica. Por isso, embora não apocalíptica, não sou uma entusiasta de primeira fila. Tenho mesmo o pé atrás.

Acompanho com atenção as discussões de especialistas sobre modos de leitura em suportes diferenciados, leitura verticalizada ou fragmentária, leitura focada ou simultânea. Por isso, fico muito recompensada quando vejo opiniões como a de Jorge Wagensberg, físico espanhol que criou e dirigiu o Museu de Ciência de Barcelona, e está no Rio de Janeiro para a 23ª conferência do ICOM, o Conselho Internacional de Museus. Para ele, segundo matéria do jornal O Globo, de sábado passado, a tecnologia vem sendo usada de forma “um tanto histérica e fetichizada”, como se estivesse nela a dinamização do que deveria ser contemplado, absorvido e maturado em um museu, até porque, além de caducar, ela pode se esgotar em si mesma. Um museu é onde o que está guardado se prolonga para além de muros e redomas, saindo de sua condição objetal para uma dimensão existencial. Concordo plenamente com a afirmação de Wagensberg: “Um visitante tem que sair do museu com ‘fome’, ou seja, com mais perguntas ao sair do que tinha ao entrar”.

Portanto, a tecnologia na educação, além do inestimável benefício aos portadores de necessidades especiais e da concretude conferida ao abstrato de fórmulas matemáticas, físicas e químicas, tem que sair de sua imobilidade pleonástica. Por que, em alguns ambientes educacionais, ficou absolutamente démodé falar sem a utilização de slides em power point, ainda que este recurso ali esteja apenas para pontuar os tópicos de uma exposição oral, sem nenhum acréscimo substantivo de informação? Há quem, sem slides preparados, nem entre em sala. Logo, há alunos que não querem se predispor a ouvir ou mesmo copiar de próprio punho qualquer informação ou exercício que se coloque sobre as lousas. Quando a imagem e o som são condição sine qua non para argumentação, vá lá, mas quando são mero exibicionismo de recursos, sem promover o conhecimento e a reflexão, que fiquem guardados.

Digo isso, pois acredito que as máquinas carecem da inteligente mediação humana. Sempre digo aos meus alunos que desconfiem dos corretores ortográficos e, sobretudo, sintáticos, pois a intenção e a performatividade de nossos discursos podem extrapolar aquilo que foi programado como regra. Uma máquina ou mesmo um software não pensam por si mesmos, não dão conta da criatividade de nossas falas. São, no entanto, fundamentais para coibir erros de grafia ou displicências de nossas digitações, são uma fonte de consulta às regras sintáticas de concordância, regência, crase ali dispostas. Mas insuficientes. No dia em que houver um programa ou software que possa prever nossas intenções semânticas e dar conta delas, estaremos diante de uma revolução. Por experiência própria, como professora, pouco vejo os alunos usuários do word se dando ao trabalho de um simples comado de revisão. A urgência e a celeridade não consideram as marcações feitas em sublinhados vermelhos ou verdes. Nesse sentido, o uso do editor de texto em nada difere daquele da máquina datilográfica, objeto de saudosismo de alguns poucos.

O e-reader, por exemplo, é uma maquininha que permite o armazenamento de milhares de livros e sua portabilidade. Isso é tão fantástico quanto saber que uma célula invisível a olho nu pode carregar um mundo de informações. Revolucionário, entretanto, seria poder constatar, daqui a alguns anos, que a leitura, processo sensório-cognitivo de descoberta de linguagens e mundos, pudesse corresponder ao quantitativo de armazenamento de uma máquina de módicos 300 gramas. Será que um leitor de livros, com recursos para grifos, destaques, notas, comentários e, às vezes, acesso a internet, produz vontade de ler, aprofundamento de informações e reflexões? Um e-reader com tais recursos é capaz de gerar “a fome” de que fala o físico espanhol? É capaz de construir perguntas, já que a capacidade crítico-reflexiva não está na formulação de respostas e soluções apenas, mas sobretudo na curiosidade, na dúvida e na imaginação?

(Analice Martins)

Um escritor de seu tempo

Em 1873, Machado de Assis, em artigo intitulado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, reivindicou para si a condição de escritor de seu tempo, imerso na realidade histórico-social brasileira da segunda metade do século XIX. Poderia parecer desnecessária tal preocupação com seu lugar de reflexão, enquanto artista de sua época, mas, para um Brasil que havia recém-abolido a escravidão – que durara três séculos – e recém- ingressado no regime republicano, ou seja, que mal saíra da condição de colônia, entender e fruir a prosa machadiana talvez não fosse tarefa fácil. Aliás, ainda hoje não parece sê-lo.

Embora tenha tido, em vida, as honrarias de maior escritor do país, sendo o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, sua prosa ficcional era vista com ares e temáticas universais, estas que, seja a época, seja a cultura em que se manifestem, sempre serão atuais e bem-vindas: o amor, o ciúme, a traição, a hipocrisia, a memória, o humor. É óbvio que nada disso lhe pode ser negado e que, por isso mesmo, seja ele nosso escritor mais influente. Não por outra razão, o igualmente influente crítico literário nacional Antonio Candido afirma, no artigo “Literatura e Subdesenvolvimento”, do livro A educação pela noite e outros ensaios (1987), que, se Machado não tivesse sido refém da pouquíssima penetração da língua portuguesa e da projeção do Brasil no século XIX, ele teria sido o que o argentino Jorge Luís Borges foi para a Europa: um modelo, uma influência internacional, um escritor capaz de, na periferia do cânone literário europeu, ser uma matriz ficcional original.

Este lamento de Candido só corrobora a importância da obra machadiana para além das fronteiras nacionais. O que me parece ainda pouco explorada, para não dizer preterida, pelo menos nos estudos escolares do Ensino Médio, é a percepção de Machado de Assis como um “intérprete do Brasil”, ou seja, aquele cuja obra de ficção não esteve longe das tensões sociais da segunda metade do século XIX, mas, ao contrário, sem ter necessidade de explorar os ícones de nossa nacionalidade, como o bem fez José de Alencar nos planos temático e estrutural, incorporando a natureza e o índio heroificado como símbolos de nossa brasilidade, além de um vocabulário de origem tupi-guarani, conseguiu dar conta do Brasil de um modo não epidérmico. Conseguiu retratar as mazelas do Brasil sem mencionar explicitamente as contradições de um país que começava a comungar ideias liberais e republicanas tendo que lidar com uma sociedade pós-escravocrata.

São pouquíssimos os estudos críticos que identificam ou reconhecem na obra machadiana esta dimensão sociológica de interpretação do Brasil. Sim, porque a ficção é também uma forma de interpretar não só o psiquismo dos indivíduos como também a história político-cultural de uma comunidade, de uma região ou mesmo de um país. Os mais importantes estudos acadêmicos se preocupam em enaltecer a universalidade dos temas machadianos, mas não conseguem alcançar o fato de que sua universalidade não se dissociou da refinada análise de seu tempo. Seu maior mérito foi transportar para o plano estrutural da obra os resquícios da opressão senhor-escravo reinantes no Brasil nos três séculos anteriores. Esta atmosfera que nos relegava a uma posição atrasada, enquanto nação independente foi, inteligentemente, erguida na construção de um narrador, segundo o crítico Roberto Schwarz, sem credibilidade, repleto de desfaçatez e opressor: “Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote”. É assim que, abusadamente, o narrador faz gato-sapato do leitor a quem, com ironia, qualifica de “fino”, mas incapaz de compreendê-lo.

Roberto Schwarz é, neste sentido, o maior crítico da obra machadiana, porque não hesitou em perseguir as chaves de entendimento que o próprio Machado já anunciara em “Instinto de nacionalidade”: “Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo” (…) O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

Ora, é este “sentimento íntimo” que Schwarz disseca, em Ao vencedor as batatas (1977) e Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo (1990), estudos capitais para se entender como não se pode dizer, em hipótese alguma, que o maior mérito machadiano está no universalismo de suas temáticas. Estas não podem ser analisadas sem a estrutura narrativa que as coloca de pé e de forma singular.

Ser, portanto, um “escritor de seu tempo” implica encontrar uma fórmula pessoal para, nos planos do conteúdo e da forma, ter como norte do projeto literário um “sentimento íntimo” de percepção da realidade pessoal e histórica que o circunda, fazer dele matéria literária e, com isso, não ter que ser refém de fórmulas estereotipadas, modismos ou tendências.

(Analice Martins)