The Oscar goes to

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

A premiação anual da Academia americana de Artes e Ciências Cinematográficas talvez não seja a mais relevante, mas com certeza é a mais célebre mundialmente e a mais atrelada ao “mercado da imagem”. É, portanto, objeto de desejo de diretores, roteiristas, atores, figurinistas etc. Dividida em categorias que contemplam as várias dimensões da produção audiovisual, tal premiação, desde 1957, oferece uma condecoração aos filmes produzidos em língua estrangeira e fora dos EUA. Esta categoria é conhecida como O OSCAR DE MELHOR FILME ESTRANGEIRO, por mais que nela, quase sempre, vençam os filmes que de alguma maneira traduzam as expectativas do olhar americano sobre as realidades culturais à sua volta.

Produções brasileiras já concorreram em várias edições e em várias categorias. Em quatro delas, estivemos entre os cinco indicados a MELHOR FILME ESTRANGEIRO: O pagador de promessas (1963), de Anselmo Duarte; O quatrilho (1994), de Fábio Barreto; O que é isso, companheiro? (1998), de Bruno Barreto e Central do Brasil (1999), de Walter Salles.

Para a edição de 2014, o Ministério da Cultura, por meio de uma comissão de especialistas, selecionou, entre 18 concorrentes, Hoje eu quero voltar sozinho, do diretor e roteirista Daniel Ribeiro, para representar o Brasil. Os indicados de fato, pela Academia, serão conhecidos no dia 16 de janeiro de 2015, e a 86ª cerimônia oficial se realizará no dia 2 de março.

Daniel Ribeiro tem 32 anos. É também o diretor dos curtas Café com leite (2007) e Eu não quero voltar sozinho (2010). Pelos dois, foi premiado em vários festivais nacionais e internacionais. Hoje eu quero voltar sozinho é seu primeiro longa e, tomara, tenha vida longa! Recebeu, em 2014, o prêmio da Federação da Crítica Internacional, na seção Panorama do Festival de Berlim, além de ter ficado em segundo lugar na escolha do público no mesmo festival. Não pretendo fazer um histórico dessas premiações. Gostaria apenas de levantar algumas impressões sem pretensões de especialista – que não sou – no assunto.

Nos filmes até então indicados pelo Brasil, já que nesta categoria não há livre inscrição, todos privilegiaram uma temática localista: o sertão, o sul do Brasil ou a história política da ditadura. Todos sabemos que temáticas só se sustentam a partir da linguagem que lhes dá existência. No cinema, esta análise envolve a imagem captada pelas lentes do diretor, editada e produzida pela tecnologia, o som acoplado, a escolha dos planos e frames, a opção por uma câmera parada e centralizadora ou uma na mão, além de tons e cores. A linguagem audiovisual tem uma sintaxe híbrida e complexa, uma engenharia própria. Talvez, por isso, seja aquela que tenha, segundo o teórico Christian Metz, o maior índice de realidade. Ou seja, a que consegue nos ludibriar com sua arte ilusionista e nos fazer quase crer que estamos diante da realidade “em carne viva”. Seu poder de atualidade (de tornar presente a matéria passada) nos faz esquecer as barreiras temporais e espaciais, fazendo-nos imergir no filme como se atravessássemos um túnel do tempo.

Para que um filme funcione, deve ter uma linguagem que o sustente e o coloque de pé. Então, se Hoje eu quero voltar sozinho ficar entre os cinco indicados pela Academia, não o será por qualquer temática outsider. Aliás, nem o Festival do Rio distingue mais a categoria “Gay”. Prova de uma política identitária sem guetificações. O fato de o filme de Ribeiro narrar também a descoberta da homossexualidade na adolescência, somada à condição de cegueira do protagonista Leo (Guilherme Lobo), um estudante do Ensino Médio, não é mais significativo do que a universalidade da adolescência e seus conflitos nos ambientes familiar e escolar: a mãe superprotetora de Leo e a mãe falecida de Gabriel (Fábio Audi), o rapaz por quem Leo se apaixona; as figuras paternas camaradas; a amiga apaixonada; o colega implicante e sarcástico, as aulas; as festinhas; os primeiros porres; o primeiro beijo.

Ribeiro opta por “uma estética da delicadeza” já presente em Café com leite, que, longe de parecer idealizada e fora da realidade, seduz o espectador a também querer para si a delicadeza do afeto, do companheirismo, da proteção. Opta, em especial, pela não “indexação” do cotidiano urbano, com ruas sem movimento, carros estacionados, calçadas vazias, ausência de elevadores e a possibilidade de se ver a lua da praça, na linda metáfora do eclipse que explica o triângulo amoroso entre Leo, Gabriel e Giovanna (Tess Amorim). Até o assunto a ser pesquisado na aula de História, em duplas de meninos ou de meninas, fato que aproxima Leo e Gabriel, excluindo Giovana, refere-se à Antiguidade Clássica. Também clássico é o gênero musical preferido por Leo. A música como linguagem não territorializada, assim como os anseios de liberdade, descobertas e afirmação do rapaz cego que não quer ser um excluído nem dimensiona sua homossexualidade como um traço de diferença. O filme é apenas a história de qualquer um, de todos nós.

Dirigido com a mão firme da delicadeza, sem excessos, nem gorduras narrativas, conciso e intenso, como devem ser os textos líricos, as imagens falam por si mesmas, como na cena em que Leo se veste com o moletom de Gabriel, esquecido em sua casa, e se aquece com o corpo e o abraço imaginados do amigo. O longa, cujo título risca o “não” presente no título do curta, é um SIM à vida, belamente endossado tanto pela imagem final de Leo conduzindo a bicicleta de Gabriel, em pé em sua garupeira, rompendo suas limitações, quanto pelo verso da canção “Janta”, de Malu Magalhães, que pontua o filme: “Eu ando em frente por sentir vontade”.

(Analice Martins)

Carta para Hernani Heffner

Caro Hernani,

Escrevo-lhe com algum atraso. Quis fazê-lo nos dias posteriores à sua vinda a Campos, mas, ainda remoendo as informações e emoções daqueles dois dias de sua permanência em nosso câmpus no IFF, deixei que minhas ideias se reordenassem. Por coincidência, encontrei a Renata no fim de semana seguinte e reforcei os meus agradecimentos por ter, não apenas intermediado sua estada entre nós, mas por ter desde sempre nos anunciado a extensão de seus conhecimentos e a simplicidade com os repartia.

Essa é uma carta-resposta, embora você não me tenha enviado nenhuma consulta, mas a escrevi assim mesmo, porque foram muitas as perguntas que nos trouxe e que, naquele tempo breve, não puderam ser respondidas. Talvez, mesmo que houvesse esse tempo, não deveriam ter sido respondidas. O bom mesmo é quando as coisas ficam ecoando, ruminando. Por isso, minhas respostas seguem morosas, inacabadas, sem pontos finais, pois acredito que a arte deva sempre nos sufocar ou, de supetão, tirar-nos o ar, como a mancha de lama no brim branco do sujeito que vai pela rua andando distraído quando o caminhão passa e lhe salpica o paletó: É a vida! A nódoa no brim branco leva-o ao desespero, faz o sujeito satisfeito de si perceber que não se basta. Eis aí a função da arte, como já apregoara Bandeira em sua “Nova Poética”.

Renata nos anunciou todos os seus predicados, seu conhecimento teórico na área do audiovisual, sua atuação na preservação do patrimônio cinematográfico, sua condição de professor da disciplina “cinema mundial” na PUC, mas isso é pouco. Tendo sido convidado para nos falar das relações entre literatura e cinema, imaginei que fosse deter-se mais na sétima arte. Qual não foi a minha surpresa e uma das motivações dessa cartinha, quando me dei conta de que seus conhecimentos sobre literatura e sobre teoria da literatura não apenas eram oriundos da condição de amador, mas de especialista, muito particularmente no que diz respeito às formas distintas de representação com que palavra e imagem se acercam da realidade. Em que pese a pujança da imagem em nossa cultura contemporânea, você bem sabe que ela muitas vezes é mais libertária quando tributária da palavra, inventada pela palavra, assinada pela palavra. Fosse o contrário, você não nos teria trazido aquele lindo filme do Carlos Nader sobre o Waly Salomão. Salve, Salomão! O rei da sabedoria! Salve, Waly! Salve a poesia a que Waly devotou sua vida, seus desejos e ambições. Viver da palavra e para a palavra, acreditando que ela tivesse a potência de erguer mundos. A canção, atividade de composição à qual também se dedicou, foi, como disse o próprio poeta, realizada para sua sobrevivência, para levar o leite para casa. Um pouco de desfaçatez nessa afirmação talvez. Ainda assim, agradecemos, pois nos legou coisas lindas.

Escrevo mesmo, Hernani, para lhe dizer que a “moldura” que envolve a realidade, essa invenção renascentista que nos reafirma a condição de representação não só da pintura, mas das artes em geral, deveria ser nossa forma máxima de conhecimento e percepção da vida, porque a reinventaria e a subordinaria aos caprichos e à genialidade do artista. A moldura que destaca do mundo a vida e que nos dá a conhecê-la e a fruí-la em uma ordem simbólica distinta da correnteza avassaladora do fluxo da realidade empírica, às vezes, não detém a “devorante mão da negra morte”. A arte dilata a vida, mas não inibe a morte. Pena, não é?

Hernani, essa carta segue para outros tantos destinatários que não o ouviram nos dias 25 e 26 no IFF. Publico-a para que se sintam motivados a pensar a partir do que você nos propôs: A palavra ainda daria conta da realidade? Que potência teria a palavra – fonte inauguradora do mundo, convenhamos -, diante da elasticidade e da plasticidade das imagens, fabricadas e multiplicadas por tecnologias quase autômatas? A imagem precederia a palavra ou a palavra nos daria à luz, fazendo-nos existir?

Engoli em seco no exato momento em que você, muito adequadamente, relembrava-nos Walter Benjamin e a questão que deixou para a posteridade ao sucumbir (e como não?) diante do horror: O que podemos ainda narrar depois do Holocausto? Que experiências a palavra ainda comportaria ou o que poderia ainda fabular? Experiência e pobreza nos calaram? Como dizer o indizível? Abrir mão da representação e deixar a vida, ela mesma, sem cortes, edições e transubstanciações, falar sem véus? Benjamin não poderia ter morrido.

Naquele exato momento em que você, Hernani, calava-nos com as indagações do filósofo alemão e nos levava a refletir sobre a arte e a vida, assassinaram friamente, a menos de 50 metros daquele auditório, um aluno de nosso instituto. A “moldura” se desmanchou. Cruelmente tiraram a vida de um rapaz de 18 anos na esquina de nossa instituição a que você chamara, dada a excelência de nossas estruturas, de Suíça. Nossa Suíça ainda não foi capaz de calar a barbárie e a violência em nossa cidade. Mas havemos de encontrar palavras que desarticulem a barbárie, que restituam a vida, que a reinventem e que a reconduzam à possibilidade de significar na arte.

Um grande abraço,

Analice Martins