Carta para Hernani Heffner

Caro Hernani,

Escrevo-lhe com algum atraso. Quis fazê-lo nos dias posteriores à sua vinda a Campos, mas, ainda remoendo as informações e emoções daqueles dois dias de sua permanência em nosso câmpus no IFF, deixei que minhas ideias se reordenassem. Por coincidência, encontrei a Renata no fim de semana seguinte e reforcei os meus agradecimentos por ter, não apenas intermediado sua estada entre nós, mas por ter desde sempre nos anunciado a extensão de seus conhecimentos e a simplicidade com os repartia.

Essa é uma carta-resposta, embora você não me tenha enviado nenhuma consulta, mas a escrevi assim mesmo, porque foram muitas as perguntas que nos trouxe e que, naquele tempo breve, não puderam ser respondidas. Talvez, mesmo que houvesse esse tempo, não deveriam ter sido respondidas. O bom mesmo é quando as coisas ficam ecoando, ruminando. Por isso, minhas respostas seguem morosas, inacabadas, sem pontos finais, pois acredito que a arte deva sempre nos sufocar ou, de supetão, tirar-nos o ar, como a mancha de lama no brim branco do sujeito que vai pela rua andando distraído quando o caminhão passa e lhe salpica o paletó: É a vida! A nódoa no brim branco leva-o ao desespero, faz o sujeito satisfeito de si perceber que não se basta. Eis aí a função da arte, como já apregoara Bandeira em sua “Nova Poética”.

Renata nos anunciou todos os seus predicados, seu conhecimento teórico na área do audiovisual, sua atuação na preservação do patrimônio cinematográfico, sua condição de professor da disciplina “cinema mundial” na PUC, mas isso é pouco. Tendo sido convidado para nos falar das relações entre literatura e cinema, imaginei que fosse deter-se mais na sétima arte. Qual não foi a minha surpresa e uma das motivações dessa cartinha, quando me dei conta de que seus conhecimentos sobre literatura e sobre teoria da literatura não apenas eram oriundos da condição de amador, mas de especialista, muito particularmente no que diz respeito às formas distintas de representação com que palavra e imagem se acercam da realidade. Em que pese a pujança da imagem em nossa cultura contemporânea, você bem sabe que ela muitas vezes é mais libertária quando tributária da palavra, inventada pela palavra, assinada pela palavra. Fosse o contrário, você não nos teria trazido aquele lindo filme do Carlos Nader sobre o Waly Salomão. Salve, Salomão! O rei da sabedoria! Salve, Waly! Salve a poesia a que Waly devotou sua vida, seus desejos e ambições. Viver da palavra e para a palavra, acreditando que ela tivesse a potência de erguer mundos. A canção, atividade de composição à qual também se dedicou, foi, como disse o próprio poeta, realizada para sua sobrevivência, para levar o leite para casa. Um pouco de desfaçatez nessa afirmação talvez. Ainda assim, agradecemos, pois nos legou coisas lindas.

Escrevo mesmo, Hernani, para lhe dizer que a “moldura” que envolve a realidade, essa invenção renascentista que nos reafirma a condição de representação não só da pintura, mas das artes em geral, deveria ser nossa forma máxima de conhecimento e percepção da vida, porque a reinventaria e a subordinaria aos caprichos e à genialidade do artista. A moldura que destaca do mundo a vida e que nos dá a conhecê-la e a fruí-la em uma ordem simbólica distinta da correnteza avassaladora do fluxo da realidade empírica, às vezes, não detém a “devorante mão da negra morte”. A arte dilata a vida, mas não inibe a morte. Pena, não é?

Hernani, essa carta segue para outros tantos destinatários que não o ouviram nos dias 25 e 26 no IFF. Publico-a para que se sintam motivados a pensar a partir do que você nos propôs: A palavra ainda daria conta da realidade? Que potência teria a palavra – fonte inauguradora do mundo, convenhamos -, diante da elasticidade e da plasticidade das imagens, fabricadas e multiplicadas por tecnologias quase autômatas? A imagem precederia a palavra ou a palavra nos daria à luz, fazendo-nos existir?

Engoli em seco no exato momento em que você, muito adequadamente, relembrava-nos Walter Benjamin e a questão que deixou para a posteridade ao sucumbir (e como não?) diante do horror: O que podemos ainda narrar depois do Holocausto? Que experiências a palavra ainda comportaria ou o que poderia ainda fabular? Experiência e pobreza nos calaram? Como dizer o indizível? Abrir mão da representação e deixar a vida, ela mesma, sem cortes, edições e transubstanciações, falar sem véus? Benjamin não poderia ter morrido.

Naquele exato momento em que você, Hernani, calava-nos com as indagações do filósofo alemão e nos levava a refletir sobre a arte e a vida, assassinaram friamente, a menos de 50 metros daquele auditório, um aluno de nosso instituto. A “moldura” se desmanchou. Cruelmente tiraram a vida de um rapaz de 18 anos na esquina de nossa instituição a que você chamara, dada a excelência de nossas estruturas, de Suíça. Nossa Suíça ainda não foi capaz de calar a barbárie e a violência em nossa cidade. Mas havemos de encontrar palavras que desarticulem a barbárie, que restituam a vida, que a reinventem e que a reconduzam à possibilidade de significar na arte.

Um grande abraço,

Analice Martins

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