Glossário e interpretações

EDWARD SAID, intelectual palestino, autor da imprescindível obra “Orientalismo”, afirma: “Hoje em dia, é muito frequente ouvir intelectuais acadêmicos norte-americanos ou britânicos falarem sobre o mundo islâmico; são abordagens feitas de forma redutora e, a meu ver, irresponsável sobre algo denominado “o islã” – cerca de 1 bilhão de pessoas, dezenas de sociedades distintas, meia dúzia de línguas principais como o árabe, o turco e o iraniano, todas elas espalhadas por um terço do planeta. Ao usarem essa única palavra, parecem considerá-la um mero objeto sobre o qual se podem fazer grandes generalizações que abrangem um milênio e meio da história dos muçulmanos, e sobre o qual antecipam, descaradamente, julgamentos a respeito da compatibilidade entre o islã e a democracia, o islã e os direitos humanos, o islã e o progresso”.

TARIQ RAMADAN, filósofo e acadêmico, professor de filosofia europeia e estudos islâmicos, no Saint Antony’s College, em Oxford, adverte: “O fato de existirem milhões de descendentes de árabes e mulçumanos vivendo no Ocidente causa um impacto tremendo no Islã. O mundo islâmico está de olho em nós. Se conseguirmos estabelecer uma boa convivência, sob uma base de confiança mútua, estaremos enviando o sinal de que é possível repetir essa experiência num patamar mais amplo, entre o Islã e o Ocidente. O maior atrito ocorre na Europa, mas é também onde há maiores possibilidades de diálogo. O desafio é tremendo. O caso das caricaturas do profeta Maomé, feitas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em setembro de 2005, é o sonho da extrema direita europeia e também dos extremistas islâmicos, pois atrapalha o entendimento. Os mulçumanos europeus precisam estar totalmente comprometidos com a identidade europeia e convictos de que esta sociedade é também a deles”.

ALAIN FINKIELKRAUT, filósofo francês de origem judaico-polonesa, sentencia: “Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse desprezo. Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de desenhos que demonizam o Talmud (conjunto de interpretações das leis mosaicas). É a dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a um só tempo a liberdade de expressão e o respeito às crenças. É a essa renúncia que as elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa”.

HOMI K. BHABHA, crítico literário indo-britânico e estudioso da diáspora, postula: “A blasfêmia vai além do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição. A blasfêmia não é simplesmente uma representação deturpada do sagrado pelo secular, é o momento em que o assunto ou o conteúdo de uma tradição cultural está sendo dominado ou alienado no ato da tradução”.

ROLAND BARTHES, crítico literário francês, que relê SAUSSURRE, constata que “o significado é a representação psíquica de uma coisa e não a coisa em si”.

RENÉ MAGRITTE, pintor belga do Surrealismo, relembra-nos, no célebre quadro “A traição das imagens”, que a pintura de um cachimbo não é o objeto cachimbo, não é a coisa em si: “Ceci n’est pas une pipe”.

Concordo, portanto, com o que a charge de CHICO CARUSO, publicada no jornal o “Globo”, no dia 15 de janeiro, reafirma sobre as relações entre a ARTE – dimensão em que a expressão deve ser libertária – e A REALIDADE EM SI:

(Analice Martins)

“Não matarás”

O sexto dos dez mandamentos parte do pressuposto de que o direito de matar grassava entre o povo hebreu. O decálogo é imperativo, prescreve proibições, porque pressupõe condutas não desejadas e, portanto, almeja regular o comportamento daqueles a quem se endereça.

Moisés, o responsável pela transcrição dos mandamentos divinos, segundo a tradição bíblica, foi mais do que um líder espiritual, mais do que um guia em busca da Terra Prometida. Foi um legislador. Para a tradição cristã, foi uma figura imprescindível, pois coube a ele a preparação para vinda do Messias e de sua lógica revolucionária: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Toda cultura se organiza em torno de regras e preceitos. Todas precisam de funções reguladoras para a convivência harmônica. Para a moderna cultura ocidental, a imposição da morte não seria um direito irrestrito, subordinado às paixões e aos julgamentos pessoais. Mata-se em defesa própria, mata-se em situações de guerra e para sobreviver. Ainda assim, questiona-se a legitimidade de tais situações.

Os processos civilizatórios subentendem a inexistência da barbárie, do hediondo, pressupõem o respeito e a tolerância, bases de uma convivência harmônica. Toda ótica cristã está alicerçada no amor, no perdão, na percepção e na compreensão do OUTRO. Ainda que por outros vieses – psicológicos, filosóficos ou sociológicos -, ou seja, ainda que descartando a BOA NOVA, a passagem ritualística da barbárie à civilização impõe a entrada em um universo de códigos, regras, prescrições e interdições. Não podemos ignorar, no entanto, que, em nome da civilização, a barbárie sempre foi cometida. Todos os processos de colonização aí estão para reafirmar tal paradoxo.

Caminhamos em direção ao obscuro, ao temerário, ao incontrolável. Vivemos tempos de absoluto descontrole, porque da banalização da vida e do direito a ela. Para a imposição da morte ainda havia condicionais: “Se você não…, morrerá”. Esta conjunção subordinativa adverbial desapareceu por completo. Isso é a barbárie, impulsionada por motivos torpes dos quais talvez também sejamos culpados. Ao enaltecermos o consumo desenfreado, por exemplo, como medida de ascensão social, como já advertia Néstor García Canclini, em “Consumidores e cidadãos”, ao fazermos do templo do consumo a lógica da cidadania, só vamos solidificar desigualdades com falsas ilusões.

“Ele vai te matar”. Assim fui assaltada (roubada, extorquida, juridicamente) no sábado passado, caminhando de manhã pelas ruas do meu bairro, o Flamboyant. Celular e dinheiro foram as exigências dos adolescentes empoderados, sem capacete, em uma moto. Enquanto o que dirigia proferia a sentença, o carona comparsa já estava a centímetros de mim com a mão na cintura, segurando a sua arma (de verdade ou de mentira?). Entreguei o que me pediam sem pestanejar: um celular velho e uma nota de vinte reais. E se eu não tivesse o que entregar? Tremi, como todos que já passaram por essa situação. Depois, tentei correr receando que me seguissem novamente quando vissem o “celular-bomba” que haviam roubado. Um nokia xpress vermelho, modelo 2008. Não era um iphone, não era um sansung galaxy, um nokia lumina, sei lá.

A “frase-sentença” proferida por eles ainda está ecoando em meus ouvidos. Uma violência simbólica. Uma morte anunciada sem condicionais. Veloz como nossos tempos. Sem concessões, sem contra-argumentos. Eu estava indo comprar os jornais do dia. Os mesmos que anunciaram na capa a morte de um rapaz de 23 anos em Botafogo, vítima de assalto semelhante. Ele reagiu. Não podemos reagir. Temos que engolir a barbárie e a “palavra-bala”.

Janeiro em Campos dos Goytacazes. A banca estava fechada, as ruas desertas na cidade, a situação que já conhecemos. Digamos que foi a crônica de um assalto anunciado. Mas o que de fato me pasmou foi constatar que os assaltantes adolescentes ostentavam a certeza do poder de matar. Sem restrições, sem ressalvas, sem atenuantes. Mato porque mato. Seu celular vai virar dinheiro para a minha droga. Por que não conseguimos reverter essa situação, por que os bancos escolares, quando ofertados como devem ser, não conseguem inibir tal situação?

Sei que, na semana em que o mundo assistiu estarrecido ao terror do pretenso direito de matar para vingar a questionável desonra de imagens sagradas, este fato corriqueiro talvez não merecesse o meu artigo da semana. Mas há algo que me parece comum nessas duas situações: a certeza de que se pode matar, porque a civilização é uma utopia.

(Analice Martins)

A foto que não explicou o fato

A foto publicada na capa do jornal “O Globo” no sábado passado, dia 3, quis dispensar explicações no texto que a acompanhou. A manchete dizia “Serra Pelada no Arpoador”. Os primeiros dias de 2015, no Rio de Janeiro, têm sido insuportavelmente quentes. Nada mais justo e democrático que as praias cariocas sejam invadidas por banhistas sedentos do prazer de se refrescarem à beira-mar, acompanhados ainda da quase inigualável beleza do pôr-do-sol, entrevisto da praia do Arpoador na Zona Sul. Um espetáculo sinestésico, convenhamos!

Aparentemente, nenhuma novidade nesse cenário que não sejam as transformações por que vem passando a sociedade brasileira nos últimos dez anos: fortalecimento da moeda nacional, oferta ampliada de educação, acesso das classes menos favorecidas a bens de consumo e sua consequente mobilidade territorial e simbólica.

Ainda que relativizemos cada um dos fatores mencionados ou que questionemos – com razão – um enganoso “empoderamento” das classes C e D, não podemos ignorar que a segregação em espaços marginalizados se desfez e que isso deve ser saudado. No Rio de Janeiro, as estações de metrô de Ipanema e Copacabana não só permitiram que os residentes nessas áreas pudessem se valer do transporte público para o trabalho no centro da cidade, por exemplo, como permitiu a reterritorialização de espaços públicos tratados como exclusivos de uma minoria. Refiro-me às praias da Zona Sul carioca em especial, mas também às ruas, às praças, à Lagoa Rodrigo de Freitas etc.

A chegada do metrô a Ipanema em 2009 intensificou essa sensação bairrista de posse das praias e impôs uma dinâmica de circulação e de entendimento dos usos possíveis dos espaços públicos que sugerem mais o confronto do que a inserção desejada. A evocação saudosista deste território de outrora parece-me ter sido a intenção explícita, embora não verbalizada por escrito, da foto a que me refiro, além da visão preconceituosa que me pareceu carregar.

No jornalismo informativo, tudo deve ser explicado, rezam os manuais de redação. A ausência de qualquer referência ao espaço geográfico de Serra Pelada, no Norte do país, da corrida desenfreada atrás do ouro prometido no garimpo selvagem e assassino é fato sem dúvida conhecido, documentado e até vertido para o cinema, mas é datado. Portanto, deveria ser contextualizado para que indistintamente fosse compreendido por leitores de qualquer faixa etária e condição sociocultural. Quando o jornal suprime a contextualização, cria a expectativa do pressuposto, que gera o compartilhamento de ideias, ou a inferência, que se abre para análises variadas.

A foto em cores pareceu monocromática. É marrom. Um esmaecimento do tom terracota. É meio ferrugem. Dependendo do horário, da luz natural e do ângulo em que foi tirada, talvez seja “autêntica”, mas, em tempos digitais e de photoshop, não me arrisco a nenhuma afirmação contundente.

A aproximação cromática ao garimpo de Serra Pelada é atributo insatisfatório para dispensar as analogias necessárias ao desenvolvimento da matéria, por mais que seja a única justificativa que, imagino, o jornal daria, se interpelado. Com isso, as intenções implícitas do jornal passam para o primeiro plano do interesse analítico. O que o jornal “O Globo” não disse explicitamente? Por que tentou camuflar o preconceito com a imagem muda?

Serra Pelada foi terra de todos. Logo, de ninguém. De migrantes de todas as partes do Brasil, de forasteiros, de estrangeiros. Serra Pelada pode ter sido vista como uma espécie de Eldorado, mas foi sobretudo o dantesco, o inferno dos desmandos e da barbárie.

Ao optar por não contextualizar a informação “Serra Pelada”, por não explicar as razões da comparação com a atual territorialização da Pedra do Arpoador, ao fazer parecer que o calor seria quase a única razão da analogia, o jornal (a mídia, em geral) revelou todas as suas intenções e também os seus preconceitos em relação à “natureza roubada”, ao bairro invadido, ao paraíso decaído, coisas desse gênero.

O marrom de Serra Pelada usado para representar o cenário atual do Arpoador e de suas cores sempre vibrantes deveria ter sido explicado com coragem e limpidez, sem subterfúgios metafóricos e sem subentendidos preconceituosos. Afinal, a foto, no jornal, não serve para explicar o fato?

(Analice Martins)