“ISSO AINDA NÃO É POESIA”

 

Porque faço versos sobre acontecimentos,

insisto em fundir sujeito e objeto,

gosto da efusão lírica,

vez ou outra, recupero a infância insepulta

e deixo a memória brincar comigo.

*

Mas também invento,

tento resgatar do limbo

palavras perdidas

e suas faces ocultas.

*

Procuro, então, a chave

e peço permissão para entrar,

como bem me ensinou Drummond.

(Analice Martins)

Esconde-esconde

Para André

– Posso ir?

– Ainda não!

– Já posso? Que silêncio… Dá uma pista.

– Tá frio.

– E agora? Tá quente? Ana, fala alguma coisa! Você tá aí ainda?

– Um, dois, três…

– Não gosto de escuro, eu tropeço, você sabe.

-Tá quente!

– Haha! Achei!!! Te enganei, sua boba, eu não tenho medo.

 

Analice Martins (Grussaí, 23/12/2018)

SEGREDO

O que um livro guarda

nenhuma traça perfura.

*

O oco no papel

não cava um vazio.

*

O que um livro guarda

a água não dissolve.

*

A tinta diluída

não apaga o eco.

*

O que um livro guarda

não se esconde no papel nem na tinta

*

O que um livro guarda

cobre vazios e faz eco.

*

O que um livro guarda

só existe na imaginação.

 

Analice Martins (Grussaí, 18/03/2018)

Xeque-mate

A cidade esquadrinhada no mapa

parece estática:

linhas e fronteiras domadas

em legendas ordenadas.

*

A cidade ao rés-do-chão

é labirinto de passos perdidos,

retórica de deambulações

e falas em transe.

*

A cidade que avisto

do alto do arranha-céu

tem uma geometria previsível.

*

Mas a outra que os olhos percorrem

com a sola dos pés

é tabuleiro de xadrez.

 

Analice Martins – Rio, 26/02/2018

Temporalidades

O tempo não é largo nem pequeno,

muito menos eterno.

*

O tempo é imperioso,

régio e regulador.

*

Quando dócil,

é invisível.

*

Quando irascível,

é um titã.

*

Tempo tempo tempo…

*

Se circular, asfixia;

se retilíneo, dispersa.

*

Nenhum tempo é para todos,

o tempo é o que nos chega.

*

Quando o apalpamos,

somos deuses.

*

Quando o aceitamos,

somos mortais.

*

Quando nos rebelamos,

saltamos de um trampolim.

*

O tempo que temos

não é animal doméstico.

*

O que nos escapa

é alazão estranho.

*

O que vivemos

nunca se aprisiona no pulso.

 

Analice Martins – Grussaí – 05/02/2018

FOTOGRAMA 8: TRAVESSIAS

O tempo suspenso

na cidade eterna

fecha seus ponteiros

sobre mim.

*

Atrás do rio,

a cidade se abre

em becos e vielas

emaranhados em mim.

*

Das janelas avisto,

em perspectivas e camadas,

a cidade

escrita por mim.

*

A outra que se anuncia,

entre as montanhas e o redentor,

tem um mar

que abre os braços para mim.

 

Analice Martins. Roma, 25/11/2017