Por pontos ou por nocaute?

O escritor argentino Julio Cortázar recorre a uma inusitada metáfora para explicar as diferentes experiências de leitura da narrativa de ficção. Diz ele, a partir das imagens de uma luta de boxe, que o romance vence o leitor por pontos, já o conto o vence por nocaute. Esta é, sem sombra de dúvidas, a mais eficiente teorização sobre o gênero épico-narrativo.

Em vez de se basear, tradicionalmente, nos procedimentos constitutivos deste gênero literário, ou seja, na presença e na posição do narrador, na relação tempo-espaço, nas personagens, na evolução do enredo, a distinção estabelecida entre o romance e o conto tampouco se apoia numa impossível contagem do número de páginas. Afinal, o que são números para dizer da essência do literário e o que são páginas em tempos virtuais?

Muito inteligentemente, para falar dos mecanismos de expansão e de concisão, neste gênero, Cortázar se vale da experiência da leitura, da reação do leitor, validando os redirecionamentos da crítica literária a partir dos anos 70 e suas preocupações com o lugar do leitor nos processos de significação e de interpretação.

Do ponto de vista clássico, o “desenrolar progressivo dos fatos” é um dos elementos estruturantes das narrativas. A expansão de fatos e circunstâncias bem como sua trama são responsáveis por uma espécie de “contínuo” da história. O leitor se deixa, portanto, arrastar por um rio caudaloso e exuberante, rico em acidentes geográficos e volteios. Tal constituição pode sustentar tanto os estudos da épica clássica com seus feitos heroicos e grandiosos quanto o romance do século XIX. O conto, embora pertencente ao gênero narrativo, é arte para poucos, pois, sem deixar de mobilizar todos os elementos que citei, deve fazê-lo de forma mais breve e concisa, sem gorduras, sem, às vezes, a salvação do próximo capítulo ou dos seguintes, que podem ampliar e contextualizar as situações inicialmente postas em ação. Já li e ouvi muitos comentários de romancistas experientes temerosos de se lançarem na seara do conto.

A metáfora de Cortázar traz para a semântica das interpretações literárias a imagem da luta, do corpo a corpo entre a obra e o leitor a quem ela se destina. Algo como um processo de captura ou abate. O leitor deve ser abatido, aprisionado, rendido e dar-se por vencido. O leitor deve ser desarmado com os golpes certeiros do texto literário. Não imaginemos, no entanto, que o mérito está apenas na luta vencida por nocaute, com o leitor na lona, tonto ou sem sentidos. O mérito está na vitória, seja ela por pontos ou por nocaute, afinal trata-se de uma luta.

Mas o que seria este golpe certeiro, de retirar o fôlego e os sentidos do leitor, tumultuando-o, perturbando-o, deslocando-o de seu centro de equilíbrio, arrebatando-o de uma só vez? Que golpe veloz é este que nos faria tremer as pernas e rodopiar a cabeça? Onde estaria este gatilho? No plano do conteúdo? No da forma? Em ambos? O nocaute seria a revelação de um mistério, de uma intriga ou a criação de seu suspense? A composição de um personagem, suas nuanças, seus matizes ou sua firme condução? Lembremos sempre que, na literatura, personagens, cenário e tempo são todos criações da arte da palavra, tudo depende da orquestração delas, sejam muitas ou bem poucas. O conteúdo na literatura, desculpem-me, é quase nada, não requer nenhuma originalidade nem exclusividade.

Lembremos também que não valem os golpes baixos, abaixo da linha da cintura, por exemplo, e outros tantos. A luta deve ser vencida no limite das regras estipuladas. Aliás, quaisquer luta ou jogo determinam suas regras. A literatura não é um “vale tudo”, não deveria sê-lo. Nela, tudo pode fazer valer. Isso é outra coisa bem diferente. Nela, tudo pode adquirir valor estético, o mais ordinário, o mais trivial dos fatos ou sentimentos em palavras.

Para mim, a formulação de Cortázar deveria constar de qualquer livro didático de ensino médio em vez das muitas baboseiras que nada dizem. Há dois contos que parecem ótimos exemplos de nocautes. São de dois ótimos pugilistas: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan! São eles “Passeio Noturno – parte I” e “Apelo”.

O primeiro é desconcertante não apenas porque o narrador atropela e mata, com seu potente carro e sem explicação aparente, vítimas escolhidas aleatoriamente nos subúrbios cariocas. Um golpe seco, rápido, certeiro. As descrições iniciais do ritual de uma família pequeno-burguesa sugeririam, no máximo, o tédio nosso de cada dia, jamais a frieza assassina estampada em pouquíssimas palavras. “Homem ou mulher?” Esta oração que poderia dar alguma ambiguidade e orientação para o desfecho das ações se desmonta imediatamente na seguinte. Não se trata de sexo, mas de morte. O carro acelera o motor e atropela a vítima em segundos. Mal refeito do golpe, o leitor vai à lona por nocaute, quando o personagem chega a casa, sem sobressalto, cumprimenta a mulher e vai se deitar com placidez. “Touché”!

O de Dalton Trevisan, que não tem mais que vinte linhas, retrata a passagem de um mês da partida de uma mulher, cuja ausência é relatada na desarticulação do espaço físico da casa onde até o “canário ficou mudo” e “bocas raivosas mastigam” sem conversar. Cada imagem desta falta doída é como um golpe. Para mim, o nocaute vem quando o narrador constata: “O leite primeira vez coalhou”.

(Analice Martins)

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