“Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?/ Mãe não tem limite,/ é tempo sem hora,/luz que não apaga/ quando sopra o vento/ e chuva desaba,/ veludo escondido/ na pele enrugada,/ água pura, ar puro,/ puro pensamento./ Morrer acontece/ com o que é breve e passa/ sem deixar vestígio./ Mãe, na sua graça,/ é eternidade./ Por que Deus se lembra/ – mistério profundo-/ de tirá-la um dia?/ Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca,/mãe ficará para sempre/junto de seu filho/ e ele, velho embora,/será pequenino/ feito grão de milho.”
A primeira vez que ouvi os versos do poema “Para sempre”, de Drummond, foi dos lábios de minha mãe, Ruth Maria Chaves Martins. Não li com meus olhos, fui guiada pela voz dela. Voz que se calou na quinta passada. Minha mãe sempre fez da palavra uma semente fecundante. Aqueles que a conheceram ou dela ouviram falar não hão de me desmentir, bem sei.
Aprendi, muito cedo, que minha mãe não era só minha e de meus irmãos. Ela era também de muitos. Nunca me enciumei dessa partilha quase que compulsória. Pelo contrário, percebia que ela se multiplicava nos corações alheios, por meio de suas palavras que eram carne, fato, exemplo. Sim, nela, de alguma forma, o verbo se fazia carne, se me permitem a apropriação.
Como professora que foi, ergueu muitos mundos a partir do “reino das palavras”. Aproximava, com extrema naturalidade, palavras literárias tão distantes, de outros séculos ou mesmo milênios, como num passe de mágica. Era espantoso não só nos depararmos com o mundo de informações que carregava na memória, mas, sobretudo, sentir que tudo nos chegava sem nenhuma opressão do conhecimento. Éramos tocados doce e profundamente por suas lições que faziam as palavras dialogarem, corresponderem-se, duelarem, amasiarem-se. Minha mãe foi uma tecelã de textos. Sabia, com destreza, fio por fio, bordá-los diante de nossos olhos.
Em 2007, tive a oportunidade de lhe fazer uma homenagem pública num evento de letras e artes – o ENLETRARTE. Disse à época e reafirmo agora: Muitos a ouviram, deslumbrados e emudecidos, como se diante do narrador que compartilha com seus ouvintes o acúmulo das experiências e das leituras ou como se diante da sagacidade de Sherazade sempre a nos seduzir para a história do dia seguinte ou como se enfeitiçados pelo canto da sereia a nos levar às mais belas profundezas do mar. Foram e são muitos os mundos descortinados pela literatura com que nos presenteou. Foram muitas as veredas trilhadas com o auxílio de suas palavras.
Ouvi, certa vez, de uma colega um comentário feito por um jovem aluno de minha mãe a respeito de seu peculiar jeito de ensinar em meio a tantos apelos e artifícios tecnológicos: “Ah, dona Ruth, ela não precisa de nada não. Ela só precisa de uma caneta e de um leque!”. Somos profundamente gratos ao desenho desta caneta e ao en(canto) de suas histórias.
Poucos, talvez, tenham tido a oportunidade de conhecer a poeta que foi. Modestamente, por acreditar não ter dado a sequência necessária aos seus projetos literários, sequer comentava sobre esse assunto. Fui conhecer minha mãe-poeta já quase adulta, por intermédio dos que a leram e que admiravam sua verve poética. Só tarde fui ler seu “Roda, pião!”, livro publicado, em 1956, pelas edições “Jornal de Letras”, quando tinha apenas 22 anos. Este livro, ilustrado pelo meu pai, Oswaldo Martins, à época seu noivo, ganhou o importante prêmio Nestlé e os aplausos da crítica especializada: “Não se trata apenas de uma estilização de temas folclóricos, mas de uma aproximação à alma de nossa gente, um acordar de sua sensibilidade pela elevação da própria voz (…) Manejando com habilidade o metro popular da redondilha, dando preferência à popular quadra rimada, o verso dessa jovem poetisa revela um fino lavor artístico, pela expressão a um tempo simples e profunda, diáfana e musical. Não nos engane, porém, sua aparente facilidade, que fruto é não de uma despreocupação técnica, mas de uma luta com a palavra, de onde só saem vitoriosos os verdadeiros poetas”. Sentença que também lhe foi conferida por Manuel Bandeira, em crônica intitulada “Roda, pião!”: “Ruth é paraense, mas seria poeta até em Paris”.
Concordo com Bandeira e lhes ofereço alguns versos: “O pião entrou na roda/ entrou em mim, no meu dano,/ e rodando e bambeando/desenganou meu engano./ O pião rodou no tempo,/zuniu tão alto que ouvi;/ calou o aviso das horas/ que avisavam que perdi.” Seu pião suspendeu o tempo e as horas, seu pião zuniu alto em nossos corações, seu pião nos enredou, seu pião nos transportou.
Drummond tinha razão: morrer só acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, em sua graça, é eternidade.
(Analice Martins)