Os segredos de Leminski

Não tenho nenhum pudor em dizer de que matéria é feita esta minha prosa semanal. Um pouco do que li há muito, um pouco do que leio no momento e muito do que me provoca na leitura deste ontem e deste hoje. Mais ou menos isso: escrevo estas “palavras tortas” para responder coisas para mim mesma ou coisas para outros que provavelmente não me lerão.

Então, não me constranjo em criar diálogos hipotéticos como, por exemplo, este de agora em que sinto vontade de responder ao mistério que ronda as livrarias há algumas semanas e que foi comentado durante a última tanto por José Miguel Wisnik quanto por Caetano Veloso: a vendagem surpreendente da poesia reunida de Paulo Leminski.

Como se sabe ou como alardeiam editores, poesia não vende, sobretudo, no Brasil. Quanto a isso, não há muito o que discutir. Os números são categóricos. Mas que poesia agrega, arrasta multidão e nos faz penetrar surdamente no reino das palavras, como diria Drummond, lá isto é verdade sim! Lembro-me de ter visto a mineira Adélia Prado permanecer por umas quatro horas autografando na Festa Literária de Paraty em 2006. Lembro-me ainda mais vividamente de tê-la ouvido falar de poesia, ler poesia, declamá-la, respirá-la, sem sequer se levantar da cadeira, sem nenhuma performance que não a do “verbo que se fez carne”. A plateia silenciava. Vez ou outra a interrompia com aplausos. E chorava também naquela manhã ensolarada.

Estranho que tal poder magnético não encontre tantos compradores. Será mesmo? Todo comprador é um leitor? Todo leitor, em tempos de internet, precisa comprar? Entender fenômenos de venda nas ondas do capitalismo tardio é uma multitarefa, requer a análise de aspectos como estratégias editoriais, mídia, sociologia da leitura etc. Será que um livro bem vendido se faz permanecer na memória de nossos sentidos como, às vezes, alguns versos que se colam em nossa pele como tatuagem?

A capacidade de fusão e de síntese da linguagem poética me parece uma das razões para que, queiramos ou não, sejamos atravessados pela poesia nossa de cada dia. Pense aí! Que versos ou imagens criadas por eles você carrega consigo e que lhe invadem a vida? Quando esses versos são ainda mais comprimidos, apertados em poucas estrofes ou numa só, em poucas sílabas, o potencial incendiário das palavras poéticas é enorme. Acredito ser este um dos segredos do poeta curitibano Paulo Leminski, morto em 1989, e cuja poesia foi reunida e lançada pela Companhia das Letras.

É desse delicioso espanto que falaram Wisnik e Caetano: mais de 20 mil exemplares vendidos em um mês e meio. Para eles e para muitos outros apreciadores do estilo haicai do poeta, é um fato a se comemorar. Num país de forte tradição poética, como o Brasil, mas de poucos leitores, o que explicaria o fenômeno definido por Wisnik como “um catatau cor de laranja em meio aos não sei quantos tons de cinza”, numa referência ao título de um dos livros de Leminski e à cor da edição de “Toda poesia”? O resto da metáfora cromática dispensa explicações.

Como pesquiso e arquivo definições de poesia por força do ofício, apoio-me, para tentar responder aos segredos de Leminski, numa colhida recentemente numa entrevista do jovem poeta árabe Tamin Al-Barghouti: “A poesia é uma forma mais eficiente de falar, intensificar e aprofundar o significado das palavras”. Concordo com o poeta, concordo com esta eficiência da linguagem poética. Vejo esta eficiência na poesia de Leminski.

Meu primeiro contato com sua poesia foi na Faculdade. O marido de uma amiga, ambos estudantes de Letras, ia defender uma dissertação de Mestrado sobre o poeta curitibano, e “Catatau” era seu foco central. Amizades e influências são almas gêmeas. Minha atenção primeiro se deparou com os mistérios de “Catatau”. Seus olhos já o apalparam?

Muitos anos depois, já na condição de professora, deparei-me de novo e sistematicamente com sua poesia por conta da pesquisa de uma orientanda, a jornalista Patrícia Daldegan, cujo trabalho recomendo como leitura: “Sacro lavoro: o fazer poético nos versos de Paulo Leminski”.

Confesso, então, alguns dos versos que, embora lidos na juventude, ainda carrego do meu lado esquerdo. São dois poemas de um livro que se chama “La vie em close”. Relendo-os agora, acho que se completam de certa forma: “A quem me queima/ e, queimando, reina,/ valha esta teima./ Um dia melhor me queira”. O outro é desenhado, qual haicai, na página em branco, perde um pouco a força quando transcrito assim: “haja/hoje/p//tanto/hontem”.

Como disse de início, são coisas que escrevo para responder a mim mesma. Vou, então, me dispensar de explicações maiores. Verso que é de valor vale por si mesmo. Para que roubar-lhe o segredo?

 (Analice Martins)

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