Os poderes da ficção

Nem seria necessário algum tipo de comprovação científica para que percebêssemos os efeitos da ficção literária sobre os leitores. Efeitos sensórios, lúdicos, catárticos, pragmáticos e cognitivos. As artes poéticas clássicas já os haviam apontado. Os estudos críticos sobretudo do século XX também distinguiram as várias funções da leitura literária. Entretanto, para um mundo tão científico-tecnológico como o nosso, talvez, fosse indispensável mesmo uma pesquisa que os afirmasse.

Interessante observar que funções não são efeitos. Uma função é mais facilmente perceptível e mensurável. Já efeitos, em especial os de ordem cognitiva, parecem invisíveis e intangíveis, carecem de uma prova científica. Pois então, ei-la. A revista Science (migre.me/gkK9J) acaba de publicar uma matéria intitulada “Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind” (ler ficção literária melhora a teoria da mente). Cheguei a esta pesquisa a partir da leitura do artigo “Qual romance você está lendo?” do psicanalista e ficcionista Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo de 17/10. Vale a pena conferir a pesquisa e o texto de Calligaris.

A teoria da Literatura já havia, de certa forma, afirmado tais efeitos quando discutiu o critério de “desautomatização” da língua em seu uso literário. Tal conceito, proposto pelos formalistas russos no início do século XX, também ficou conhecido como “estranhamento”. Acho-o extremamente relevante e producente para compreensão do que seja literatura. Trocando em miúdos seria o mesmo que reconhecer que, no contexto de uso literário da língua, qualquer que ela seja, o leitor é obrigado a sair de sua zona de conforto de uma percepção linear e automatizada, para compreender, com sobressaltos e esforços, a mensagem veiculada por determinado código linguístico. Eis aí a questão: é no processo de estranhamento da informação transmitida que o leitor “ganha” cognitivamente. Ao correr atrás da decodificação da informação, o leitor se exercita, como diz Calligaris: “Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação”. Dito assim, pode parecer não valer a pena, já que a palavra de ordem e de opressão de nossa sociedade é otimizar o tempo, diminuindo esforços e percalços. Mas vale e muito! Os iniciados que o digam!

A pergunta que Calligaris diz ser a ideal para entrevistas – “Qual romance você está lendo?” – sempre me acompanha quando estou, como examinadora (ó céus!) em processos seletivos. Se não a faço diretamente, vou pela tangente. Quando não estou nesta posição, a que o ofício me obriga, mas, na rua, em praças, em ônibus, metrôs, aviões ou praias, vou me esgueirando até que consiga ver a capa do livro que o sujeito empunha e ler-lhe o título. Como se, ao ler o título, meus olhos disparassem uma radiografia cognitiva do sujeito perto de mim. Terrível, confesso! Mas não consigo me libertar deste vício, quase uma sanha antropológica.

Portanto, concordo com os resultados da pesquisa. Aliás, eles nem me seriam necessários para reconhecer que, ao ler, por exemplo, uma oração como “Diadorim é minha neblina” de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, toda a tortuosa delícia dos sentimentos de Riobaldo se revele extraordinariamente. Há quem possa alegar que as metáforas não são exclusividade de textos literários. De fato, não são. Portanto, quando empregadas, em qualquer outro contexto, implicam um exercício mental em busca do sentido representado pelo objeto escolhido como alvo da similitude.

Na poesia, creio que tais poderes se avolumem, pois o caráter de concisão imagética encurrala o leitor em seus processos cognitivos. Não quero dizer, em absoluto, que tais esforços cognitivos estejam atrelados a quaisquer dificuldades lexicais ou sintáticas constantes no texto. Não mesmo! No miniconto de Antonio Carlos Secchin, intitulado “Fim de papo”, não há nenhuma das dificuldades mencionadas, no entanto, por força da criatividade do autor, o leitor é obrigado a uma pequena ginástica para ser brindado com o entendimento: “Na milésima segunda noite,/ Sherazade degolou o sultão.” Fantástico, não?

Uma antologia poética pode ser uma biografia para lá de autorizada, como “Mar” (editora Caminho), de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das maiores vozes da poesia portuguesa do século XX. Recolho das vagas de seu mar poético, alguns versos do poema “No alto mar” que, penso, provocam efeitos sensórios e cognitivos, porque capazes de nos deslocarem do comodismo de nossas percepções automatizadas e nos lançarem no mar revolto do conhecimento: “No alto mar/ A luz escorre/ Lisa sobre a água./ Planície infinita/Que ninguém habita./O Sol brilha enorme/ Sem que ninguém forme/Gestos na sua luz./Livre e verde a água ondula/Graça que não modula/O sonho de ninguém/São claros e vastos os espaços/Onde baloiça o vento/E ninguém nunca de delícia ou de tormento/Abriu neles os seus braços.”

 (Analice Martins)

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