Nem de bolo nem de miojo

Na última semana, o jornal “O Globo” trouxe à tona a reflexão sobre os critérios de correção da redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), expondo tanto exemplos de “inserções totalmente indevidas”, como também as imensas dificuldades linguísticas dos jovens estudantes deste segmento. Candidatos quase todos a vagas nos bancos universitários do país, revelam pouca habilidade no manuseio da língua materna para fins comunicativos e acadêmicos.

Já escrevi sobre o ENEM em outra oportunidade, mas não vejo como me esquivar neste momento, não apenas porque a língua é um patrimônio cultural a ser preservado, mas sobretudo porque parece inviável que ela possa cumprir sua função precípua de  comunicação quando tão  maltratada. Não quero que este texto pareça uma caça às bruxas ou aos autores de desvios linguísticos que ficaram salvos de punições severas. Reproduzo aqui algumas indignações: Como o aluno responsável pela inclusão do hino do Palmeiras, numa redação cujo tema foi a imigração para o Brasil no século XXI, pôde ter alcançado 50% da nota máxima? Ainda que o tema de 2012 tenha sido espinhudo para os distantes observadores das dinâmicas sociais contemporâneas, nada justifica a postura provocativa e confessa dos estudantes que dela se valeram. Fernando Maioto afirmou que queria testar a banca e comprovar a tese de que os corretores de fato não leem a redação integralmente. Já aprovado em Medicina na Faculdade Faceres, de São José do Rio Preto, não teve medo nem pudor de jogar lenha na fogueira.

Parece-me que há vários lados nesta questão: estudantes desconhecedores do registro formal da língua portuguesa e com dificuldades de articulação de suas ideias; corretores premidos pelo tempo, pela baixíssima remuneração (R2,35 por redação corrigida) e por discordâncias na aplicação dos cinco critérios da avaliação; as prescrições da Gramática e as flexibilidades da Linguística. Ou seja, por trás dos exemplos de infrações ortográficas, sintáticas e semânticas, alardeadas pela mídia, há dimensões filosóficas que merecem ser consideradas.

Norma é, antes de tudo, um padrão que emerge dos usos linguísticos e que se legitima. Nas gramáticas das línguas, no entanto, é sobretudo um conjunto de prescrições do que está certo ou errado. Chama-se Norma Culta a que é prestigiada socialmente, quer dizer, a que se impõe por fatores político-econômicos que lhe são extrínsecos. Como parte da identidade das nações, sofre a ação de forças coercitivas que lhe controlam a dispersão, os desvios e o desmembramento, assegurando certa homogeneidade que permita o reconhecimento e a compreensão entre usuários.

O ensino de Língua Portuguesa deveria conduzir o aluno não só à percepção das variedades linguísticas (de região, de contexto, por exemplo) como também à adequação de seu emprego em situações mais ou menos formais, mais ou menos espontâneas, algo como as roupas que vestimos. Para que não sejamos “barrados no baile”, devemos obedecer às suas prescrições. Mas, em última instância, a escola deveria preparar o aluno para expressar suas ideias e seus pontos de vista críticos com clareza. De nada vale uma bela ideia na cabeça. Ela tem que funcionar quando vestida pela linguagem oral ou escrita. Aí reside o aspecto crucial para seu funcionamento: entender que a clareza e a lógica dependem do correto emprego de elementos coesivos, entre os quais, podem estar as conjunções, as preposições, os pronomes e mesmo aspectos sintáticos de concordância e regência. A ortografia seria o aspecto de mais fácil resolução, bastaria uma consulta sistemática aos dicionários, hoje, ao alcance dos dedos em celulares, tablets, notebooks. Ou então a memorização oriunda do hábito de leitura. Um usuário comum da língua deveria saber que as palavras “caju” e “Açu” não têm acento agudo no “u”, mas que “Itaú” tem. Nem seria necessário saber que, nas duas primeiras, não se acentua o “u” em palavras oxítonas. Já o “u” de “Itaú” forma, sozinho, sílaba tônica em hiato.

Vejamos de uma outra forma: De acordo com os critérios do ENEM, um  aluno pode incorrer em infrações ortográficas ou mesmo sintáticas que não comprometam a clareza de sua argumentação. Esta relativização parte do entendimento de que a Norma Culta é apenas uma das competências que o aluno deve demonstrar. Mas penso que, em qualquer caso de intencional quebra de coerência, como a inserção de assuntos não relacionados ao tema – receita de miojo ou o hino do Palmeiras – não deve haver nenhuma ponderação. A banca deve atribuir nota zero. Não cabem aqui as justificativas dos corretores de que as outras partes estavam ligadas ao tema, que não houve ofensas morais ou graves infrações linguísticas.  Uma redação é um todo coeso, não partes segmentadas, ora bolas!

O que urge discutir não são apenas os critérios empregados na correção das redações, sua aplicação mais intransigente ou não, mas que experiência linguística a Escola vem construindo na formação do aluno? Como pode prepará-los de forma eficiente para a expressão e a comunicação de seus pontos de vista? O ENEM surgiu como exame avaliativo do Ensino Médio. Como tal, deveria servir de diagnóstico para repensar seus impasses e falências.

(Analice Martins)

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