“Não matarás”

O sexto dos dez mandamentos parte do pressuposto de que o direito de matar grassava entre o povo hebreu. O decálogo é imperativo, prescreve proibições, porque pressupõe condutas não desejadas e, portanto, almeja regular o comportamento daqueles a quem se endereça.

Moisés, o responsável pela transcrição dos mandamentos divinos, segundo a tradição bíblica, foi mais do que um líder espiritual, mais do que um guia em busca da Terra Prometida. Foi um legislador. Para a tradição cristã, foi uma figura imprescindível, pois coube a ele a preparação para vinda do Messias e de sua lógica revolucionária: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Toda cultura se organiza em torno de regras e preceitos. Todas precisam de funções reguladoras para a convivência harmônica. Para a moderna cultura ocidental, a imposição da morte não seria um direito irrestrito, subordinado às paixões e aos julgamentos pessoais. Mata-se em defesa própria, mata-se em situações de guerra e para sobreviver. Ainda assim, questiona-se a legitimidade de tais situações.

Os processos civilizatórios subentendem a inexistência da barbárie, do hediondo, pressupõem o respeito e a tolerância, bases de uma convivência harmônica. Toda ótica cristã está alicerçada no amor, no perdão, na percepção e na compreensão do OUTRO. Ainda que por outros vieses – psicológicos, filosóficos ou sociológicos -, ou seja, ainda que descartando a BOA NOVA, a passagem ritualística da barbárie à civilização impõe a entrada em um universo de códigos, regras, prescrições e interdições. Não podemos ignorar, no entanto, que, em nome da civilização, a barbárie sempre foi cometida. Todos os processos de colonização aí estão para reafirmar tal paradoxo.

Caminhamos em direção ao obscuro, ao temerário, ao incontrolável. Vivemos tempos de absoluto descontrole, porque da banalização da vida e do direito a ela. Para a imposição da morte ainda havia condicionais: “Se você não…, morrerá”. Esta conjunção subordinativa adverbial desapareceu por completo. Isso é a barbárie, impulsionada por motivos torpes dos quais talvez também sejamos culpados. Ao enaltecermos o consumo desenfreado, por exemplo, como medida de ascensão social, como já advertia Néstor García Canclini, em “Consumidores e cidadãos”, ao fazermos do templo do consumo a lógica da cidadania, só vamos solidificar desigualdades com falsas ilusões.

“Ele vai te matar”. Assim fui assaltada (roubada, extorquida, juridicamente) no sábado passado, caminhando de manhã pelas ruas do meu bairro, o Flamboyant. Celular e dinheiro foram as exigências dos adolescentes empoderados, sem capacete, em uma moto. Enquanto o que dirigia proferia a sentença, o carona comparsa já estava a centímetros de mim com a mão na cintura, segurando a sua arma (de verdade ou de mentira?). Entreguei o que me pediam sem pestanejar: um celular velho e uma nota de vinte reais. E se eu não tivesse o que entregar? Tremi, como todos que já passaram por essa situação. Depois, tentei correr receando que me seguissem novamente quando vissem o “celular-bomba” que haviam roubado. Um nokia xpress vermelho, modelo 2008. Não era um iphone, não era um sansung galaxy, um nokia lumina, sei lá.

A “frase-sentença” proferida por eles ainda está ecoando em meus ouvidos. Uma violência simbólica. Uma morte anunciada sem condicionais. Veloz como nossos tempos. Sem concessões, sem contra-argumentos. Eu estava indo comprar os jornais do dia. Os mesmos que anunciaram na capa a morte de um rapaz de 23 anos em Botafogo, vítima de assalto semelhante. Ele reagiu. Não podemos reagir. Temos que engolir a barbárie e a “palavra-bala”.

Janeiro em Campos dos Goytacazes. A banca estava fechada, as ruas desertas na cidade, a situação que já conhecemos. Digamos que foi a crônica de um assalto anunciado. Mas o que de fato me pasmou foi constatar que os assaltantes adolescentes ostentavam a certeza do poder de matar. Sem restrições, sem ressalvas, sem atenuantes. Mato porque mato. Seu celular vai virar dinheiro para a minha droga. Por que não conseguimos reverter essa situação, por que os bancos escolares, quando ofertados como devem ser, não conseguem inibir tal situação?

Sei que, na semana em que o mundo assistiu estarrecido ao terror do pretenso direito de matar para vingar a questionável desonra de imagens sagradas, este fato corriqueiro talvez não merecesse o meu artigo da semana. Mas há algo que me parece comum nessas duas situações: a certeza de que se pode matar, porque a civilização é uma utopia.

(Analice Martins)

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