Fechaduras e Janelas

Para o pesquisador francês Philippe Lejeune, o diário serve para conservar a memória, sobreviver, desabafar, conhecer-se, deliberar, resistir, pensar e escrever. Funciona como uma espécie de lançadeira, escrita voltada para o futuro, “garrafa lançada ao mar”, cujo destinatário primeiro seria o próprio autor da escrita.

São muitas as tentativas de definição que Lejeune estabelece para as “escritas do eu” ao longo de uma pesquisa de mais de 40 anos. No Brasil, a reunião dessa trajetória de estudos foi publicada pela editora da UFMG, em 2008, em “O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet”. Referência nesse gênero discursivo, antes considerado “menor”, o teórico investiga não apenas as fronteiras entre diversos modos de expressão considerados como “literatura íntima”, mas também as alterações que tal gênero sofreu na mudança para o suporte virtual.

O diário é apenas uma das práticas discursivas em que se passa uma vida a limpo. Na sexta passada, meu colega de espaço e de leituras, o professor Sérgio Arruda, discorria sobre uma delas em especial – as memórias -, delimitando seu caráter personalíssimo e, portanto, intangível. O diário, ao contrário das memórias, não se volta para o passado, recolhendo sua importância. Por estranho que possa parecer, mira o futuro. A partir dos vestígios colhidos a cada dia, o diário possuiria uma natureza mais ativa do que as memórias e a autobiografia cujo fim seus autores já sabem. O diário construiria o autoconhecimento e as deliberações feitas em silêncio como se diante de um espelho.

Quando se desgarra dos manuscritos, da folha de papel, das cadernetas, a escrita diarista rompe o lacre do segredo antes guardado a sete chaves em gavetas escondidas, cofres e fundos falsos. Quando ganha as telas do computador e as janelas da internet, o diário viola as fechaduras do íntimo. A confissão e o desabafo ganham novos interlocutores. As páginas de papel em que se depositavam impressões, experiências e desejos, como formas de organização do eu, tornam-se voláteis, imateriais e suspeitas. Sua autoria é muitas vezes colocada em xeque, em tempos de muitos perfis possíveis para um único eu.

Em vez da intimidade repartida com um interlocutor silencioso, “o show do eu” na internet, na feliz formulação da pesquisadora Paula Sibilia, quer um Outro que responda ou que, pelo menos, seja um leitor desejoso de compartilhar experiências. Os blogs que explodiram, no Brasil, nos primeiros anos do século XXI, trouxeram a contradição na própria etimologia da palavra: “web” (página na internet), “log” (diário de bordo), se considerarmos a poética da confissão do segredo que sempre o distinguiu das outras escritas do eu. O diário, em sua matriz convencional, estava destinado a um silêncio só rompido com a morte do diarista ou com sua iniciativa de comunicação.

Em tempos de internet, a comunicação, antes emudecida por um interlocutor passivo, recebe novos contornos e outros paradigmas. Há uma exibição do íntimo que ficava trancafiado. Assistimos a um fenômeno de publicização deliberada do privado tanto em função do afã de alguns minutos de fama quanto da cortina de fumaça que é a virtualidade. O virtual existe, está ali nos espreitando, mas na distância enganosa da tela que nos protege. A exposição que nos liberta quase sempre do peso do segredo é confortável porque não nos deixa cara a cara, a menos que queiramos, com esse outro a quem confiamos nossas experiências e formas de perceber a realidade. A internet, então, é ao mesmo tempo, fechadura por onde se espia e janela por onde se pode atravessar o íntimo.

Se, por um lado, o redimensionamento do íntimo é a diferença mais ruidosa dos blogs em relação aos diários de papel, por outro, não se desfez a intenção de, ao transformar a vida em linguagem, ou seja, fazê-la existir em palavras e frases, construir um corpo simbólico que sobreviverá à morte física. Transformados em palavras, sobreviveremos!

Passados mais de dez anos da explosão dos blogs no Brasil e de suas múltiplas intenções, as que parecem não ter desaparecido são as de comunicação e interatividade. Muito além do buraco da fechadura, estão as janelas que se abrem em caixas de diálogo, comentários, divulgação de trabalhos, compartilhamento de leituras.

Das funções que Lejeune atribuiu ao diário na relação com a pessoa que o escreve, duas delas mantiveram-se firmes independentemente da matéria acolhida: escrever e pensar. Diz o pesquisador: “Mantém-se enfim um diário porque se gosta de escrever”. Segue afirmando que quem escreve um diário “encontra a doçura de existir nas palavras e a esperança de deixar um vestígio”. O diário e também o blog, acrescento eu, são “métodos de trabalho”, são lugares onde o pensamento pode ser um processo de criação mais livre e mais aberto às contradições e aos rumores da realidade que nos circunda.

(Analice Martins)

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