Retorno possível: retratos da obra de João Gilberto Noll

Em Rastros do Verão, novela publicada em 1986, o personagem, que retorna a Porto Alegre para reencontrar o pai doente, pergunta-se sobre a história pessoal que poderia contar, depois de anos andando por aí: “Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura?”

Berkeley em Bellagio, romance publicado em 2002, é dedicado a Porto Alegre, abre-se com o mote da origem, na epígrafe de Fabrício Carpinejar: “‘A morada em que nasci me habita’”. Diferentemente do retorno, abortado pela morte e pela desintegração, em Hotel Atlântico (1989), e do retorno, sem encontro e sem resgate, em Rastros de Verão, Berkeley em Bellagio acena para algum retorno passível de felicidade: “Digo-lhe que tenho o que festejar, que voltar para casa é o melhor da vida”.

Muito embora se saiba, de antemão, da impossibilidade de um retorno original, é o próprio João Gilberto Noll, em entrevista ao Caderno Ideias do Jornal do Brasil, em novembro de 2002, que registra o fato de o personagem acabar por “se reconciliar com sua história e geografia”, na vivência das pequenas culminâncias do cotidiano.

Berkeley em Bellagio assume intencionalmente uma discussão a respeito de pertencimentos, sejam os territoriais, sejam os afetivos e sexuais. Na condição efetiva de estrangeiro, o personagem João, agora nomeado e localizado, experimenta o deslocamento da própria língua, tendo que se apropriar de uma língua estrangeira, o inglês, no caso, para que pudesse testemunhar e protagonizar suas histórias. Como professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e escritor agraciado com uma bolsa da Fundação Rockefeller, em Bellagio, na Itália, o protagonista experiencia o deslocamento agora voluntário e consentido, como condição de existência.

Em Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas, publicado em 2001, o sociólogo Michel Maffesoli defende a tese do nomadismo como uma constante antropológica, como uma reatualização do desejo de outro lugar, logo, do Outro. Isso incitaria o movimento de saída de si mesmo e, consequentemente, de existência. O desejo de outro lugar, atitude típica dos nômades, configuraria, nesta narrativa, outras etapas do estudo que o próprio Noll afirma fazer sobre a “… indeterminação das identidades em voo cego”. Neste sentido, Berkeley em Bellagio é sim um divisor de águas. Os deslocamentos perdem a cegueira e se fazem à luz das escolhas: tanto a de sair do país quanto a de voltar para casa, para cidade natal. Trata-se agora da personagem que enfrenta seus desterros de forma nomeada, tanto na paisagem estrangeira, por vezes inóspita, quanto na sexualidade assumida.

O imperativo do deslocamento, em trajetória sucessiva de múltiplas identificações, consolidou-se como tônica em Hotel Atlântico e A céu aberto (1996), por exemplo. O acirramento dessa errância sempre se fez sentir nas imagens dilaceradas que os esfíngicos e recorrentes espelhos nunca recuperaram. O espelho é também o tópos do estranhamento, do vazio que se preenche com uma imagem em ruínas, desintegrada e alheia,

Em Hotel Atlântico, o personagem não se reconhece no espelho, afirmando ser de “uma terra remota, obrigado a enfrentar diariamente as maiores intempéries”. Em A céu aberto, também diante de um espelho, o personagem percebe o esfacelamento de pertencimentos anteriores e à sua volta: “… uma vez ou outra chegava perto de um espelho e analisava que no outro lado além de mim não havia mais ninguém e eu possuía contornos me resguardando das formas que pareciam desmanchar em volta…”

Em face de uma total ausência de marcas territoriais, tais narrativas sempre sugeriram um descompromisso com localizações de qualquer natureza. São Paulo, Rio de Janeiro seriam qualquer cidade. Portanto, mapas com trajetos previamente configurados nada significavam: “No mapa o interior de Minas parecia um formigueiro de localidades. Os meus olhos desceram um pouco, entraram pelo interior de São Paulo, pararam no Paraná”. Ao passo que, em Berkeley em Bellagio, o personagem afirma, diante também de um espelho, querer voar para Porto Alegre, pela certeza talvez de tudo já ter visto antes.

Então, o que poderia, à primeira vista, parecer nota dissonante em uma sequência narrativa de esvaziamento de pertencimentos identitários e de personagens à deriva, à margem de estabelecimentos e de estabilidades, traduz, no fundo, a discussão contemporânea da coexistência de múltiplos pertencimentos. O dado novo na prosa de Noll parece ser a possibilidade de uma tal performatividade de caminhos sinalizar para algum retorno possível.

A saída receosa do cárcere/casa do próprio idioma, fundada no temor de não ter o que contar, a súbita amnésia linguística, quando do advento da fluência na língua inglesa, e a reapropriação da língua portuguesa, quando da nova condição de paternidade no retorno a Porto Alegre, são brilhante metáfora construída para deflagrar a ressemantização do espaço original, da familiaridade tão esgarçada.

Não é por outra razão que o domínio da língua inglesa é simultâneo à lembrança irruptiva de Porto Alegre. A foto amarela de uma tarde de verão na cidade é “memória subterrânea” que “não quer passar, tão forte quanto o súbito inglês”.

Longe, então, de se desdizer, ao acenar para uma felicidade possível em uma origem recriada, João Gilberto Noll insere um ponto a mais no estudo das suas identidades em voo cego: a certeza, compartilhada com o personagem, de que “… tudo o que vinga na vida vem em duplo, e pronto!”.

(Analice Martins)

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*Resenha feita originalmente para a Revista Grumo, nº 02, publicada em outubro de 2003.

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