Para o dia nascer feliz

A experiência de esquecer o celular em casa pode ser uma grande reflexão sobre o tempo. Afinal, carregamos, com esses smartphones ligados à internet, o mundo na palma da mão. Carregamos também todas as suas urgências, instabilidades, suscetibilidades e novidades. Talvez já nem saibamos mais como estar fora de tal sincronismo. Distância virou uma palavra a ser abolida dos nossos vocabulários, algo meio abjeto e anacrônico. É claro que esta constatação tem uma paga. Os tributos são altos.

Penso dessa forma, ainda que reconheça que um celular na bolsa pode obrar milagres, retirar-nos de situações quase irremediáveis, salvar vidas, encontrar vidas sob escombros, enfim, evitar ou contornar tragédias e, assim, interromper o que, antes, seria irreversível. Eu mesma, certa vez, fiquei presa em um elevador com minha mãe, minha irmã, minha sobrinha, à época, com uns dois anos e um tio. Quando o desespero começava a nos apertar, lembrei-me do celular na bolsa. Já lá se vão uns treze anos. Do outro lado da linha, outro tio, não menos nervoso, ligava para o corpo de bombeiros. No final, o alívio se misturava às risadas.

Ainda assim, peguei-me extasiada outro dia pela manhã em que esquecera dois aparelhos em casa e, passado o primeiro ímpeto de retornar, relaxei e gozei. Duas maravilhosas horas de desligamento em que o esquecimento do “aparelhinho da alegria” me conduziu à sensação de suspensão do tempo. Sim, eu prendera o gênio na garrafinha e me mantive longe de suas garras cruéis, absorta de suas imposições e embalada pelos versos de Chico Buarque: “Não se afobe, não. Que nada é pra já”.

Canto baixinho esses versos como uma espécie de mantra ou de rosário, crendo que sua repetição me salvará do “já”, o diapasão da vida contemporânea. Isso aqui não é papo de preguiçoso não, muito embora esteja escrevendo essas “mal traçadas linhas” em uma manhã de segunda com uma brisa fresca que vem do pontal de Atafona. É uma cachacinha que tomo às segundas de manhã, seja lá onde estiver, para aguentar o tranco depois até às 22h40min, quando saio de sala de aula, quase sempre feliz.

O fato é que essa portabilidade do mundo que smartphones promovem, considerada seu maior atributo, é também um despotismo para nossas rotinas. Podemos não atender às chamadas, não acessar a internet ou as redes sociais, mas ele fica lá como uma acusação de nossa alienação ou sumiço, como se fosse uma obrigação estar online.

O telegrama, o rádio, a televisão e o próprio telefone em suas versões fixas já representaram esse assédio informacional. Eu me sinto assim às vezes: estuprada pelo mundo. É contraditório, pois não sei viver sem um jornal. Em Campos, em que não encontramos a Folha de São Paulo, o Estadão, o Correio Braziliense ordinariamente nas bancas e, se não acorrermos a elas até às 11h mais ou menos, podemos vir a não ler nada, fico nervosa, ainda que possa ligar qualquer aparelho em casa e deixar que o mundo venha para minha cama ou para minha mesa de café da manhã.

Os celulares, no entanto, parecem-me a tradução mais exata da formulação de David Harvey sobre a pós-modernidade: a tal compressão espaço-tempo. Para mim, este é o verdadeiro mal-estar da civilização contemporânea. E, para fugirmos dele, precisamos nos esconder dos aparelhinhos. Estar sem eles, é, atualmente, uma experiência sensória radical, quase uma amputação de membros. É, no entanto, com tal ausência, que reaprendemos a olhar as pessoas, a ouvi-las, a encontrar soluções criativas, a dar ao corpo e à mente um compasso menos frenético.

Diz o ditado popular que a pressa é inimiga da perfeição. Mas quem se importa? A instantaneidade, a simultaneidade, a sobreposição de tempos, ou seja, esta espada do “já” virou nossa companheira inseparável. Ai de nós, caso não tenhamos prontidão, discernimento rápido, não saibamos fazer leitura dinâmica e digitar na velocidade da luz, arderemos no fogo do inferno.

Nesse contexto, smartphones são companheiros do imperativo da velocidade, esquecê-los quase nos gera culpa, temos que nos desculpar por isso, não podemos estar off line, nem usar a desculpa de que estávamos sem o sinal da operadora. O dia que relatei no início desta crônica, em que esqueci os celulares em casa (ato falho, dirão os psicanalistas de plantão), dei ao meu corpo e ao meu espírito uma viagem libertária, saltei para fora do tempo do “já” e cantei com Chico: “Não se afobe não…”.

(Analice Martins)

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