O sertão de Ronaldo Correia de Brito

O escritor Ronaldo Correia de Brito é cearense, mas mora em Recife. Sua ficção, representada pelos contos de Faca e Livro dos Homens, além dos romances Galileia e Estive lá fora, encena os tensos diálogos entre a ambientação sertaneja e a esfera urbana, entre tradição e modernidade, entre localismo e cosmopolitismo.

O premiado romance Galileia (2009) narra o retorno dos primos Adonias, Davi e Ismael à casa do patriarca, o avô Raimundo Caetano, na qual todos passaram a infância. Homens da cidade e do mundo, viajantes e estrangeiros, fazem o caminho de volta ao sertão do qual fugiram como “aves de arribação”, segundo o avô. A celebração do aniversário do patriarca moribundo é o mote da viagem. O reencontro com um passado que não esconde culpas, mágoas, violência e tragédia é temido pelos três assim como o sertão com o qual se deparam.

São as ruínas de um passado opulento, de latifúndios com até doze mil cabeças de gado, que são vislumbradas pelas janelas da caminhonete que os traz de volta. Com a agricultura e a pecuária falidas, o sertão descortinado aos olhos dos personagens é outro. Os tempos mudaram, como diz, sobre a terra e os filhos, o dono de uma birosca à beira da estrada: “Não existe mais roça, nem eles querem, não existe mais gado, nem eles querem. Tem a cidade sem emprego”.

O sertão descrito pela ficção de Brito é agônico, sua grandeza épica pertence a uma outra ordem econômica do Brasil. Já o sertão contemporâneo se assemelha à periferia da cidade grande. Vive às margens de uma efetiva modernização, ainda que beneficiado por ela. Celulares, games, internet, motocicletas e mototáxis encurtam as distâncias, mas não preenchem o vazio de empregos, nem incluem o sertanejo marginalizado. Se antes era o flagelo da seca, agora a prostituição como resultado de uma modernização excludente.

As tradições culturais locais servem tão-somente para encenações. Roupa de couro e chapéu na cabeça são tristemente adereços para o xaxado, não correspondem mais ao exercício de uma função. Até os aboios de vaqueiro são ouvidos apenas nos programas de rádio. O sertão arcaico é apenas imagem, simulacro: o quarto de fabrico de queijo na Galileia, por exemplo, arruinou-se, as prensas lembram esqueletos de dinossauros, lembranças da fartura de leite: “Nos fogões de lenha não se torra café nem manteiga, nem se produz sabão da gordura de porcos e bois. Panelas de barro e cobre, cuias, jarras, potes e alguidares perderam a função. Minguaram, substituídos sem saudades por plásticos e acrílicos”.

Seria temeroso, no entanto, afirmar que o sertão ficcionalizado por Brito seja apenas uma paisagem e um cenário em ruínas, pano de fundo para discussões mais universalizantes. A fortuna crítica tem feito coro a esse olhar, embalada, sem dúvida, pela voz do próprio escritor, cujas entrevistas ajudam a construir tal discurso de autoridade.

Penso que uma das grandes subversões temáticas da prosa de Brito tem sido insistir na representação do sertão como um lugar de passagem, de trânsito, atravessado por deslocamentos e abandonos, incapaz de agarrar o homem a terra. A paisagem desolada e arruinada de agora em nada lembra os “inventários do passado”, “quando os Inhamuns eram uma terra rica, cheia de pasto, em que não parava de chegar gente” como afirma o personagem Ismael. Nesse contexto, observa-se não apenas a reestruturação de uma ordem econômica de produção, mas sobretudo um traço mais acentuado, sinal de que os tempos irremediavelmente mudaram: a mobilidade. É desses atravessamentos e hibridizações de que fala Brito.

O conceito de lugar identitário, relacional e antropológico, postulado pelo antropólogo Marc Augé, pode ser associado ao sertão da prosa regionalista de 30, ao qual os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, mesmo acossados pela seca e pela miséria, desejavam estar plantados, criando raízes e agarrando-se  a terra. O deslocamento compulsório em direção à cidade grande era antes de tudo uma estratégia de sobrevivência, não um desejo de errância. O sertão da Galileia de Brito não é relacional, é lugar de passagem e de fluxos. Um lugar em que, como diz Adonias, estão todos sempre de passagem ou de saída. Portanto, perceber o sertão como um “não-lugar”, na acepção de Augé, fratura o discurso localista da tradição regionalista brasileira, embaralha e tensiona as fronteiras entre campo e cidade, configurando um palco de tensões entre a herança rural e o futuro apocalíptico das cidades.

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*Este texto é parte do artigo que apresentei, em 2014, em Rennes (França), no congresso “Cartografias literárias do Brasil atual: espaços, atores e movimentos sociais”.

(Analice Martins)

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