“Agoniza, mas não morre”

Não gosto dos comentários proféticos de que o fim do livro impresso é iminente e irreversível e de que ele só sobreviverá como objeto de arte. Não acredito neles. Sou do time dos menos apocalípticos que creem na materialidade de sua permanência e de sua convivência com novos formatos. Faço coro com os que reconhecem que a televisão não assassinou o rádio nem o cinema, que o CD não destruiu o LP.

A imagem do palimpsesto, a escrita em camadas sobrepostas num pergaminho, parece-me ideal para o entendimento das dinâmicas culturais de nossa contemporaneidade. O pergaminho era reutilizado. Portanto, uma nova escrita nunca apagava por completo a anterior. Ler também era atravessar vestígios e reconstruir épocas. No pergaminho, enfrentavam-se muitas temporalidades.

Quando vejo, então, matérias como a da correspondente do jornal “O Globo”, Priscila Guilayn, sobre as mortes em série das livrarias na Espanha, fico a pensar no livro como o samba na canção de Nelson Sargento: “mudaram toda a sua estrutura, te impuseram outra cultura e você nem percebeu”. Com certeza, os fatos registrados na matéria de 19 de janeiro, pela jornalista, são duros. A histórica livraria Catalónia, em Barcelona, que foi capaz de sobreviver até à Guerra Civil Espanhola, fechou suas portas no mês passado. Esmoreceu diante de outras batalhas: uma Europa em crise, que lê menos e compra menos livros, embora publique bastante. O adversário maior, no entanto, foi a incontestável revolução promovida pelo computador e pela internet. A digitalização dos livros e sua oferta gratuita ou módica pela internet foi um golpe certeiro.

Os dados, se analisados friamente, não são tão aterrorizantes quanto saber que no lugar da Catalónia se erguerá – impávido colosso – um McDonald`s. Das 3,5 mil livrarias espanholas, a crise acabou com menos de 2%. Em Madri, para as 25 que foram fechadas, outras 27 foram abertas. Se olhados de forma apenas estatística, os números são até positivos, mas o que se esconde por trás disso é devastador. Uma livraria é um espaço com função social e não apenas comercial. Quando agarrada à história de uma cidade, de um país, é também uma instituição e, como tal, sua perda é retrocesso, é dano para a história cultural de uma região. No caso da Catalónia, segundo a referida matéria, a livraria criou uma editora para publicar autores catalães, engajou-se no movimento separatista, criou uma distribuidora para abastecer livrarias menores fora de Barcelona, financiou a compra de títulos sobre a história da Catalunha. Ou seja, não fez só negócios, mas articulações político-culturais.

A digitalização dos livros e sua disseminação só podem ser comemoradas. Afinal, o saldo dessa conta é, num certo sentido, a democratização da leitura. Aliás, não apenas isso. Produzir diretamente conteúdo para internet significa ter à disposição outras mídias: a sonora e a imagética, por exemplo. A cultura digital altera sim as estruturas da cultura impressa. No que diz respeito ao livro, seus modos de ler e de circular sobretudo. Assim como o livro impresso impôs à oralidade das narrativas outras formas de contar e de ler, a cultura digital oferece a aparente democratização do acesso, a libertação do suporte, a salvaguarda do risco de vê-los queimados ou perdidos, embora não determine obrigatoriamente mais leitores. Um usuário ou navegante não é necessariamente um leitor.

É nesse porém que vejo a importância das livrarias, do contato pessoal com o vendedor ou livreiro, da proximidade física em um lançamento, das rodas de leitura, da conversa ao pé do ouvido, de tudo que é também uma sala de bate-papo aconchegante.

Da Espanha, em Madri, vem a conquista de um novo espaço, dedicado à leitura, única razão de existência de um livro. A “Casa del lector” é um projeto afinado com tudo que a tecnologia pode nos oferecer de melhor. Há tanto acervo físico quanto digital de texto, som e imagem. Tudo ao alcance de um toque e de graça. Uma biblioteca entre o passado e o futuro. Um lugar de incentivo à formação do leitor. A casa se chama também Centro Internacional para Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Leitura. Pesquisem e acessem www.casalector.fundacion.gsr.com.

Durante a Guerra Civil, a Catalónia teve que se chamar “La Casa del libro”, o que de fato toda livraria deveria ser: a casa do livro. Sem querer fazer trocadilhos baratos, ponho-me a pensar que, como a casa do livro é a casa da leitura, deveria ser uma porta de entrada e um convite amoroso a uma aventura verdadeiramente revolucionária. Por isso me dói ver uma cidade sem livrarias, como Campos, ou uma cidade a perder livrarias para redes de lanchonete, farmácias, supermercados, como o Rio de Janeiro. Por isso, não concordo que devamos assistir passivos à extinção das livrarias ou nos calarmos diante da sua ausência.

Está longe o futuro que se erga numa única temporalidade, na homogeneidade e na platitude de uma superfície de led carregável no bolso. Deixemos que a materialidade sobreviva! Afinal, o que faz alguém assistir a um filme em 3-D ou 4-D que não a sensação de uma dimensão física que extrapola o engodo da tela?

(Analice Martins)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *