A ficção da Copa do Mundo

Eventos como a Copa do Mundo, capazes de reunir milhões de cidadãos de nacionalidades diferentes em torno de um sentimento de pertencimento, têm sempre um quê de ficção. Não porque construam uma mentira, mas tão-somente por fingirem um modo fixo de localização no tempo-espaço: ser de algum lugar e sentir esse lugar de uma forma uníssona.

Assim como as religiões, o futebol, sobretudo quando em época de campeonatos mundiais, recupera raízes às vezes esfaceladas pelo igualmente intenso sentimento de repulsa que uma nação pode nos despertar no dia a dia. Por isso, não é de estranhar que as mesmas vozes que vêm tomando de assalto as ruas, as rodovias, as praças e a esplanada desde 2013, por interesses diversos, reúnam-se, agora, em um só grito de entusiasmo: Vai que é sua, Brasil!

Do quase nada que entendo de futebol, percebo, no entanto, essa dimensão de pátria disseminada que em tempos de Copa se retrai numa espécie de fundamentalismo religioso. Jogadores que talvez passem a maior parte de suas vidas jogando em times estrangeiros sonham a esperança da convocação para, enfim, vestirem a camisa de seu país de origem e se consagrarem como campeões do mundo por sua seleção, bradando o hino e agasalhados pela bandeira nacional.

Mesmo para os que pouco sabem de futebol, não é difícil perceber a dinâmica do capital regendo os passos de nossas promessas futebolísticas. A internacionalização do capital e a irrefreável globalização dita as forças de deslocamento e transferência dos jogadores mundo afora. Os mais bem sucedidos são cidadãos do mundo, vestem grifes internacionais, deslizam em carros importados e jatinhos particulares, mas dizem sentir falta do arroz e do feijão brasileiros. Será?

Os menos afeitos a essa narrativa de saudade do arroz com feijão hão de dizer que até isso é marketing, faz parte do discurso localista do qual nenhum jogador brasileiro do Paris Saint-Germain, Barcelona, Real Madri, Milan, Bayern de Munique e não-sei-mais-o-quê pode abrir mão sob pena de não ser escalado por Felipão, o gaúcho bravo e macho, que simboliza nossa virilidade (ou seria vigor?) futebolísticos. Tem também gringo no nosso futebol, mas eles dizem gostar do nosso arroz com feijão e churrasco.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, as tradições são inventadas. Nesse sentido, elas também são mais ficção do que empiria. Ao contrário do que pensa o senso comum, a ficção não é o oposto da verdade. A ficção é uma outra forma de construção da verdade de nossos sentimentos e, mais legítima, porque marcada por nossas subjetividades. No caso das tradições, há ainda o fato de serem ficções compartilhadas por uma coletividade. Sem tal sentimento de pertença comum, não poderíamos falar em tradições e raízes nacionais.

A nação brasileira, politicamente falando, talvez tenha nascido com o grito de Dom Pedro na primeira metade do século XIX, mas quem de fato criou o Brasil com suas diversidades, suas múltiplas raízes, seu hibridismo e sua urbanidade incipiente foi o Romantismo de Gonçalves Dias, de Castro Alves e de José de Alencar. Devemos à literatura romântica o início da exposição de nossa constituição mestiça, ainda que vista por um sentimento europeizado.

Pois a Copa do Mundo, uma outra vez em solo brasileiro, é como a literatura: uma espécie de ficção na qual projetamos nossas raízes, nosso sentimento de pertencimento por vezes esgarçadinho e tão pobrinho para parafrasear o poeta Vinicius de Moraes. Embora cantemos a pátria como mãe gentil, já sabemos que essa rima desandou e que a acalentamos como patriazinha tão pobrinha.

Mas, nessas ocasiões, juntamos nossos esforços exauridos e gritamos com força atávica: Vai que é sua, Brasil! Da pátria sem sapatos como a sabemos, queremos vê-la de gloriosas chuteiras auriverdes.

(Analice Martins)

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