A escola e a marginalização da literatura

A inclusão da literatura na grande área das linguagens nos Planos Curriculares Nacionais (MEC: 1999) fez parecer que a grande responsável pela educação sentimental do indivíduo até o século XIX seria destronada da sua fortaleza disciplinar nas matrizes curriculares do Ensino Médio. Esta falsa ameaça só reafirmou a condição específica da literatura enquanto linguagem, como já asseverara o poeta Mallarmé: “Absolutamente não é com ideias, meu caro Degas, que se fazem versos. É com palavras”. Se a palavra é, portanto, o signo específico e a materialidade da linguagem literária, é com aquilo que elas evocam em sons, imagens e ideias que reside o grande tropeço na relação ensino-aprendizagem quando a literatura entra nos domínios curriculares do Ensino Médio, pois que se faz necessário, aí, compreender as contingências histórico-culturais – às vezes, ainda não percebidas pelos alunos – como elementos modeladores de uma visão de mundo (para convocar a bem-vinda expressão de Marx) que irrompe de forma direta ou mediada, explícita ou implicitamente, engajada ou desgarradamente nas formas linguísticas, na linguagem expressa em verso ou em prosa.

Para que esta percepção seja aguçada e consolidada para o aluno, é imprescindível que tal materialidade linguística lhe seja insinuada e despertada desde os primeiros passos na leitura, caso contrário ele encontrará na tessitura, nessa desautomatização da linguagem, na linguagem desgarrada do cotidiano, no veneno antimonotonia, um empecilho dos textos literários, a pedra de tropeço, e, como estratégia de sobrevivência na travessia da leitura, empurrará para baixo do tapete seus mecanismos distintivos, sua especificidade, e se agarrará à tábua de salvação dos temas envolvidos por aquela linguagem que o açoita e que ele deseja banir para entender, já que lhe são solicitadas as habilidades da compreensão, da inferência, da analogia, da interpretação. Como entender se aquela linguagem lhe é um elemento de resistência? Mais fácil apartá-la, mais fácil automatizá-la para recuperar o fluxo ideacional dos sentidos.

Eis a fissura e o abismo que muitas vezes se operam na formação do jovem leitor: a saída do paraíso do ludismo, onde a leitura do texto literário lhe era oferecida a partir das funções lúdica e “liberadora do eu”, para a entrada na ordem da cognição e do pragmatismo. A perda desse encantamento constrói, por consequência, a resistência à leitura do texto literário em que a escritura barthesiana é ruído. O significante, que antes lhe era apresentado de forma pseudo-descompromissada, agora deve ser a porta de entrada para perscrutar significados textuais nem sempre tão revelados a priori, à flor da pele, mas escondidos e soterrados. Este aluno-leitor – arqueólogo – se destitui de tal tarefa inglória, sobretudo, quando, apesar de todas as orientações mais oxigenadas sobre o ensino da língua materna, ainda prevalecem os fossos onde naufragam esses leitores infantes.

Para compensar essas distâncias, para criar pontes que atravessem tais fossos, para resgatar leitores aí mergulhados, criam-se estratégias de sobrevivência na leitura que, muito embora sejam bem intencionadas, nem sempre são bem conduzidas e acabam operando desvios maiores, quando não deserções ou leitores míopes, aqueles incapazes de se lançarem nas malhas da letra, encontrando aí sentidos novos, suplementares e intensificadores da compreensão da realidade empírica.

Refiro-me à inclusão de outras linguagens, em especial as audiovisuais, no estudo do texto literário: o cinema e a música (canção). O diálogo entre a linguagem literária e outras tantas é mais do que bem-vindo, é condição também de existência, é resposta produtiva às orientações interdisciplinares e aos conteúdos transversais. Entretanto, onde residiria a consecução de uma práxis efetiva de diálogo, na tentativa de captura e de construção de leitores de textos literários, a partir da sedução pré-textual das linguagens audiovisuais em que está imersa irreversivelmente (e não é um lamento) nossa contemporaneidade, opera-se uma espécie de ofuscamento ou deslocamento como pondera a professora Eliana Yunes, no artigo “Literatura e cultura: lugares desmarcados e ensino em crise: “Aí, todavia, se coloca a contra-face problemática para o deslocamento da cultura: o lugar da cultura tão pouco está marcado em nossas escolas de ensino médio e em boa parte do terceiro grau. O que aliena a literatura é em parte a alienação da cultura, nas discussões conteudísticas das disciplinas”.

Quando há professores desconhecedores das particularidades e funções da literatura e pouco preparados, em sua formação acadêmica e em seu cotidiano estético, para estabelecer o diálogo entre os textos literários e as demais linguagens artísticas, a literatura será tristemente posta de lado, passará de rainha a plebeia e sairá pela porta de trás das escolas, embora não fosse essa a discussão proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais.

(Analice Martins)

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