Rabugices

Relutei em escrever esse texto-desabafo. Achei que primeiro precisaria tentar ler a malfadada adaptação de “O Alienista”, de Machado de Assis, feita por Patrícia Engel Secco. O conto foi originalmente publicado em Papeis avulsos (1882) e posteriormente em edição separada como um livro independente. Como o assunto é polêmico e do meu mais absoluto interesse, tive receio de escrever de forma inflamada e sobretudo precipitada, já que não conhecia a escritora nem vira ainda a adaptação, cujo lançamento está previsto para este mês de junho. Imagino que, até a publicação destas minhas inquietações, o livro ainda não tenha chegado às mãos dos 600 mil leitores aos quais está destinado, sob os auspícios de projeto orçado em torno de 1,45 milhões de reais liberados pelo Ministério da Cultura por intermédio da lei Rouanet.

Então vamos lá: A grita tem sido grande e de peso. Já se pronunciaram pelos jornais, que eu saiba, Deonísio da Silva, João Cezar de Castro Rocha, José Miguel Wisnik, João Ubaldo Ribeiro. Imagino que pelas redes sociais também o bafafá esteja rolando. Para quem de nada ainda ouviu falar ou nada leu, basta um clique. Todos os artigos ou entrevistas a que estou me referindo estão na net. Mas antes vale a pena entender o portentoso (em números, que fique claro!) projeto da escritora-empresária como a apresentou, em seu artigo, José Maria e Silva, sociólogo e jornalista.

Patrícia Secco é autora de mais de 200 títulos de literatura infanto-juvenil (esse saco de gatos tão perigoso) com temas transversais ao gosto das escolas. Uma produção “literária” em escala industrial, convenhamos, caro leitor. Segundo fontes biográficas disponíveis pela internet, a jovem senhora trabalhou por mais de 10 anos no mercado financeiro. Depois do nascimento dos filhos, resolveu dedicar-se à função, ou diríamos carreira, de escritora. Cito: “Convencida de que só o investimento na Educação das crianças pode resultar em um mundo melhor, resolveu contribuir realizando o que gostava e sabia muito bem: escrever livros. Já fez 145 títulos, sempre abordando temas como cidadania, inclusão social e meio ambiente. A primeira tiragem de cada obra, cerca de 30 mil exemplares, é distribuída gratuitamente graças aos patrocínios que Patrícia busca. Depois, elas são comercializadas normalmente pela editora”. Só para dar uma ideia, há fontes que falam em 145, 200 e até 320 títulos. Céus!

Quero registrar que não li um livro sequer da autora, o que pode fazer de mim uma pobre leitora, além de articulista leviana. Mas, como não sou jornalista, não preciso necessariamente aferir fontes e entrevistar possíveis leitores, além de professores e pedagogos que trabalhem com seus livros. Quero mesmo é comentar o projeto.

O arranca-rabo está no que a autora julga ser sua maior contribuição à educação: levar o “bruxo do Cosme Velho” aos desvalidos da oportunidade de conhecê-lo porque não são capazes de entendê-lo nem de apreciar-lhe a grandeza estética. A solução proposta pela bem intencionada autora foi simplificar a linguagem machadiana, substituindo impunemente seu vocabulário, como se a linguagem, razão de ser da obra do bruxo, se resumisse apenas ao léxico. Socorro! Então multiplicam-se os assassinatos que investiguei pela net. Cito apenas um, pela exiguidade destas linhas, colhido novamente do artigo de José Maria e Silva: “Onde Machado de Assis escreve: ‘Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte’, Patrícia Secco traduz: ‘Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte’. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: ‘volúpia’ tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra ‘curiosidade’. Além do mais, palavras como ‘volúpia’ e ‘alumiar’ não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvida em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando”.

É óbvio que ela tenta defender seus propósitos civilizatórios, alegando que a causa é nobilíssima: “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso. A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.” Ah, ignorantona, como diria Brás Cubas, simplórios e equivocados são os pressupostos de seu trabalho! Deveriam ter sido eles, aliás, as razões deste meu desabafo, mas podem ficar para um próximo.

É altamente prejudicial à saúde literária, podendo conduzir à morte de seu autor, a adaptação que substitua palavras impunemente, sem uma intenção estética. Cada palavra trocada, expressão suprimida ou sintaxe reorganizada mexe no centro de gravidade do literário. Altera sua semântica, seu equilíbrio instável. Cada palavra carrega e encerra em si uma dinâmica semântica própria, o que, de certa forma, torna toda versão para uma outra língua tarefa deliciosamente traidora. Ora, não seria muito mais civilizatório e universal, como princípio educacional formativo, promover o acesso do aluno-leitor ao “reino das palavras”, mostrar-lhe as chaves de entrada, encantá-lo com o uso do dicionário, ler com ele, torná-lo autônomo para construir suas interpretações? Não seria muito mais digno que o dinheiro público fosse de fato empregado para uma escola pública de qualidade e para todos onde Machado não fosse um estranho, um alienígena respeitável, mas cuja leitura dependesse de um código tradutor? Não seria mais profícuo que o governo brasileiro investisse na formação de professores-leitores, esses, sim, intérpretes autorizados à condução da ascese promovida pelo universo da leitura?

Além disso, outra questão que urgiria discutir é o que se esconde conceitualmente sob o trabalho da adaptação. O verbo de origem latina (adaptare) significa encaixar, articular. O Aurélio apresenta, entre outras, a acepção de “fazer acomodar à visão” e a de “modificar o texto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, ou transformando-o em peça teatral, script cinematográfico etc”. São duas definições que dão pano para as mangas. A primeira, se pensada no plano literário, parece-me uma iniciativa de propósitos ideológicos; a segunda é igualmente problemática, pois abriga a difícil tarefa de editar, condensar sem perder a tensão característica do texto literário, portanto sem falseamento, como o fez Carlos Heitor Cony adaptando clássicos da literatura universal para o público infanto-juvenil. Abriga também processos de releituras, exercícios igualmente literários, como o de Fernando Sabino que reescreveu Dom Casmurro mudando o foco narrativo para a 3ª pessoa. Escritores como Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Osman Lins reescreveram o conto “Missa do galo”, por exemplo. São trabalhos de criação, pois têm a intenção de explorar outros ângulos da obra, derivar perspectivas. O que observamos também nas releituras em outras linguagens, amplamente exploradas na relação da literatura com os quadrinhos, com o cinema, com as artes plásticas etc. Tudo isso é muito diferente da falsa iniciativa de adesão à leitura machadiana pretendida por Patrícia Secco.

Então, fino leitor, se gostaste das reflexões, pago-me da tarefa. Caso contrário, pago-te com um piparote.

(Analice Martins)

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