O amor está no ar (II)

Todos pretendemos conceber o amor como uma invariável universal cujas manifestações recorrentes atravessam séculos e espaços. Que seja! Mas isso não o deixa isento de subordinações culturais em que interditos e concessões são variáveis. “Além da fronteira” (2012), de Michael Mayer, é um “Romeu e Julieta” étnico e homoafetivo. Como no clássico shakespereano, a paixão é proibida. Neste caso, sobretudo por conflitos políticos e religiosos. O amor entre um palestino e um israelense, se literalmente atravessa fronteiras e cercas de arame farpado, não o faz impunemente.

O filme de Mayer tem pretensões politicamente corretas. Talvez isso o torne enquadrado e pouco impactante. “Além da fronteira” fica aquém como narrativa fílmica, ao tentar expor de forma didática todas as tensões envolvidas em uma relação em que o território é a identidade cultural maior que se carrega sem que se possa ocultá-la. Nimr (Nicholas Jacob) é um estudante de psicologia palestino, dividido entre o amor à família arraigada a valores religiosos e culturais e a sexualidade só vivenciada clandestinamente. A primeira cena do filme é real e simbólica ao mesmo tempo. A travessia escondida de uma cerca divisória dos territórios palestino e israelense, para ir a uma boate gay em Tel Aviv, demonstra a dura realidade política que também se ergue entre Nimr e Roy (Michael Aloni), o advogado israelense por quem Nimr se apaixona à primeira vista.

Se a relação amorosa entre os dois flui naturalmente e sem engasgos, com sexo afinado e trocas intelectuais, o entorno é bem mais assimétrico. Roy é abastado, mora sozinho e tem pais cultos e cúmplices. Ambiente familiar totalmente diverso do de Nimr. Aliás, a revelação de sua condição homossexual é bastante doída. A rejeição da mãe, até então amável e doce, é implacável. A obediência cega a valores religiosos e culturais não confere nenhum abrigo ao filho. Sua expulsão de casa é mais um elemento que reforça tabus e interditos.

Nem o passe livre para entrar em Israel, com a vaga conseguida na universidade de Tel Aviv, consegue reverter a situação. Se, por um tempo, o amor encontra um espaço mais acolhedor na casa de Roy e mesmo numa cidade mais cosmopolita, não tardam as sombras políticas que fazem com que Nimr seja investigado e vigiado como possível ameaça terrorista. Só o que resta neste cenário de opressão é a fuga, a tentativa desesperada de entrar na França e aguardar a chegada de Roy, que, enfim, depois de todos os esforços jurídicos para conseguir o amparo legal para a situação de ambos, concorda em deixar tudo para trás. Mas, como no clássico de Shakespeare, a felicidade é interdita. É, antes, apenas uma quimera.

“Tatuagem”, de Hilton Lacerda, melhor filme do Festival de Gramado em 2013, é, como disse o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, “talvez, o filme brasileiro mais hedonista e transgressor dos últimos tempos”. O crítico atribui este fato ao recuo cronológico. A opressão da ditadura militar em 1978 não conseguiu impedir a efervescência cultural e comportamental daquele momento. Sendo profundamente lírico e intimista, “Tatuagem” é também político ao extremo, mas não de forma esquemática como “Além da fronteira”. A ousadia e a consciência transgressora se refletem na vida comunitária do grupo teatral pernambucano “Chão de estrelas” que apresenta, em um cabaré da periferia, toda a efervescência da resistência à opressão, com números burlescos, provocantes, sensuais com direito ao escracho e ao deboche inteligentes.

Outras são as formas de viver e de se relacionar. Estão lá a maconha, o álcool, a literatura, o teatro, as discussões mais corriqueiras e as intelectualizadas, o amor, a solidão, o sexo, a dor e a alegria. Clécio (o formidável Irandhir Santos) é o líder deste grupo, seu guru intelectual, o mestre-sala das apresentações, homossexual assumido, pai zeloso de um adolescente, com cuja mãe convive em harmonia. Até a chegada de Fininha (o não menos competente Jesuíta Barbosa), Clécio se relacionava com Paulete (Rodrigo Garcia), o travesti que é uma das estrelas do grupo. Arlindo, o Fininha, vem de um ambiente totalmente oposto à postura hedonista do grupo. Vive no quartel, serve ao exército e é incomodado por insinuações sobre sua possível homossexualidade. Filho de uma família pobre e castradora, namora a irmã de Paulete, que só vem a conhecer quando vai entregar-lhe uma carta da irmã. Lá se deslumbra com a atmosfera libertária do grupo e se encanta por Clécio. Encanto mútuo.

São lindas as cenas em que Clécio canta “Esse cara”, de Caetano Veloso, e o faz olhando nos olhos de Fininha. Talvez se fosse outro ator que não Irandhir Santos e outro diretor, a cena poderia até parecer piegas, mas é catalisadora e sedutora. Como a outra em que dançam juntos no primeiro contato de seus corpos ao som na vitrola, de “A noite do meu bem”, de Dolores Duran.

Também aqui não há final feliz para a história de amor entre Clécio e Fininha, embora o amor permaneça no ar, na atmosfera, nas cartas enviadas depois por Fininha. Concordo com Carlos Alberto Mattos mais uma vez: “ ‘Tatuagem’ tem o sabor das coisas vividas e sentidas até o osso”.

(Analice Martins)

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